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"É um desafio mostrar que sabemos gerir e fazemos isso bem. Ainda existe muito preconceito na universidade e na sociedade"
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Da janela do prédio de concreto, Márcia Abrahão, 55 anos, conquistou o direito de trabalhar com uma das vistas mais bonitas de Brasília: a Universidade de Brasília (UnB), que se estende até o Lago Paranoá. O espaço que a acolheu desde a graduação, em geologia, é hoje escritório para a primeira mulher eleita reitora da instituição, em 2016. A agenda lotada de compromissos não a impede de apreciar o que se passa nos jardins. “Vejo os jovens estudando, namorando, passeando. É muito lindo.” Carioca, filha de militar, cresceu com o coração entre Rio e Brasília.
A vida na academia teve início em 1982. A escolha do curso veio por influência de uma professora. “Eu queria estudar engenharia química, mas não tinha em Brasília e meus pais não tinham condição de pagar um curso fora. Então ela me sugeriu ser geóloga e eu adorei”, declara. A formação a levou a ser aprovada em um concurso da Petrobras que a fez mudar-se para o Rio de Janeiro. Ela só deixou a empresa após se casar e decidir voltar a morar em Brasília.
Aqui, foi servidora do Banco Central, período em que deu início a um mestrado, seguido de doutorado, ambos pela UnB. Foi professora do Departamento de Geologia e pesquisadora pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Paralelamente, traçava o caminho da carreira administrativa. Atuou como coordenadora de Extensão, diretora do Instituto de Geociências, decana de Graduação e, finalmente, reitora.
A cinco meses da escolha de um novo nome, ela cogita uma reeleição. “Estamos avaliando. Ainda há muito o que fazer primeiro.” Nos últimos quatro anos, esteve à frente de uma das maiores universidades do país, onde estudam 46 mil alunos e trabalham cerca de 6 mil funcionários, entre técnicos-administrativos e professores. Na gestão, reforçou a presença delas em posição de liderança: dos oito decanos, cinco são mulheres. “É um desafio mostrar que sabemos gerir e fazemos isso bem. Ainda existe muito preconceito na universidade e na sociedade”, avalia.
Ela explica que buscou montar uma equipe diversificada, com nomes de câmpus diferentes, mas que a competência foi sempre o primeiro critério. “O comum sempre foram os homens em cargos de gestão, então quando uma mulher assume essa posição, isso acaba chamando a atenção.” O desafio de mostrar que é capaz nunca a intimidou. “A geologia sempre foi uma área predominantemente masculina. Hoje ainda é, imagine naquela época. Era sempre a história de que mulher não dirige em viagem de campo, não sobe o morro. Mas as pessoas acabavam respeitando ao ver a qualidade do trabalho.”
Família
O malabarismo de conciliar carreira, vida pessoal e família fez com que Márcia, por vezes, tomasse decisões difíceis. A primeira gravidez veio um ano após o casamento, quando ela já estava no mestrado. Preocupada com o efeito disso na pesquisa que desenvolvia, veio a angústia de informar ao orientador. “Ele sempre foi muito cuidadoso, mas eu estava nervosa. Quando contei, ele me deu os parabéns e deu tudo certo.” Ao final do curso, uma segunda gestação.
Depois, deu início a um doutorado, com a oportunidade de um semestre na França. O pós-doutorado ocorreu no Canadá. Em ambas as situações, os filhos a acompanharam. “Isso foi muito importante para eles, porque abriu as perspectivas. Recentemente, minha filha passou dois anos no Canadá”, destaca. “Sempre foi complicado (conciliar o tempo). Meus filhos cresceram vendo a mãe trabalhando e viajando muito. Mas eu procuro, na medida do possível, estar sempre com eles.”
Igualdade de gênero
Apesar de comemorar as conquistas das mulheres em cargos de liderança, Márcia afirma que ainda há muito o que avançar. “O caminho é longo. Já fizemos uma grande caminhada, é preciso reconhecer. Mulheres lutaram para chegarmos aqui, para estudarmos em universidades, para votarmos, mas falta muito”, pondera. “É inconcebível termos a quantidade de feminicídio que temos. É inconcebível esse horror na capital do país. Do mesmo modo, é ver, em muitas profissões, mulheres que ainda ganham menos do que homens que exercem as mesmas funções.”
Em 2019, ela recebeu, do Senado Federal, o Diploma Bertha Lutz, um prêmio em reconhecimento às mulheres que atuam na emancipação feminina. Márcia se diz humanista e refuta o rótulo de esquerdista, atribuído a ela desde a primeira campanha à reitoria, em 2012. “Eu sou filha de militar e estudei na época em que a UnB vivia a ditadura. A minha concepção de mundo se formou dessa forma, com um pai rígido e em uma universidade que questionava o reitor”, detalha.
Mas ela admite ter mais afinidade com concepções de centro-esquerda. “Nunca fui filiada a partidos políticos, apesar de acharem o contrário. Sou a favor da universidade pública, das cotas e dos direitos humanos. Quem quiser, que me rotule, mas eu não farei isso.”
Elas vão à luta
Elas estão na educação, saúde, esporte, política. Não importa a área, as mulheres, há muito, deixaram para trás o estigma de cuidar do lar e dos filhos e assumiram lugar de destaque, servindo de inspiração para todos. Na série Elas vão à Luta, o Correio conta algumas dessas histórias no Distrito Federal.
Carreira
Veja o passo a passo da trajetória acadêmica de Márcia Abrahão
1986
Graduação em geologia pela Universidade de Brasília
1993
Mestrado pela UnB
1998
Doutorado na UnB, com período sanduíche na Université d’Orleans, na França
2003
Pós-doutorado pela Queen’s University, no Canadá
Áreas de atuação
metalogenia, hidrotermalismo, inclusões fluidas, isótopos estáveis, petrologia e mineralogia.