18 de agosto de 2020 | 05h00
“Desculpe decepcionar você. Talvez eu não tenha vocação para a fidelidade. Sou mesmo a anti-heroína da história, aquela que não dá lição de moral no final. E que até é capaz de alguns deslizes para ser feliz.” O diálogo, transcrito de uma cena da novela Mulheres Apaixonadas, em que Helena (Christiane Torloni) confessa a Téo (Tony Ramos) que viveu um romance com ele e Cesar (José Mayer) ao mesmo tempo, sintetiza as Helenas, personagens emblemáticas de Manoel Carlos, o autor. São as mocinhas não perfeitas e sem maniqueísmo, expondo suas vidas em longas cenas que vão fundo nos dramas humanos, passadas na ruas nobres do Leblon, no Rio.
Esse universo de Maneco, como ele é chamado, estará de volta à TV em dose dupla. Primeiro, no Canal Viva, com Mulheres Apaixonadas (2003), a partir de 24 de agosto. Depois, na TV Globo, com a reprise de Laços de Família (2000) no Vale a Pena Ver de Novo, com estreia no dia 7 de setembro (14 no aplicativo Globoplay).
Valmir Moratelli, autor do livro O que as Telenovelas Exibem Enquanto o Mundo se Transforma e professor de roteiro, explica como são as Helenas de Maneco, que nasceram na década de 1980, na novela Baila Comigo, quando coube a Lilian Lemmertz dar vida à primeira dessas protagonistas, inspiradas no romance Helena, de Machado de Assis, e em Helena de Troia, da mitologia grega. “É uma construção que se aproxima da realidade. Elas atravessam um pouco para a vilania, mas voltam. Trazem a dicotomia entre o bem e o mal. Outros autores não fazem isso”, diz. “O Maneco carrega até o fim da história a questão de que todo mundo pode errar na vida e nem por isso vai ser um eterno mau caráter.”
Entre as atrizes que interpretaram as Helenas em outras novelas estão Maitê Proença (Felicidade), Regina Duarte (História de Amor, Por Amor, Páginas da Vida), Taís Araújo (Viver a Vida), Júlia Lemmertz (Em Família). “É libertador ser uma Helena. É muito chato você fazer uma mocinha que só existe no papel. Quem se identifica com uma pessoa que não carrega todas as dúvidas da alma feminina? Se ela for restrita a dogmas de moral, não liberta as pessoas. Os grandes personagens são aqueles que provocam alívio. São heroínas imperfeitas”, afirma Christiane Torloni, a Helena de Mulheres Apaixonadas. Torloni foi filha da primeira Helena, em Baila Comigo. “Lilian era uma grande atriz, entrava em cena para o tudo ou nada. Então, você entender que chegou a um tamanho (como atriz) em que pode assumir esse papel, que já tem essa carga para a dramaturgia dele, é maravilhoso.”
A atriz revela a maneira generosa com a qual Maneco cuida das intérpretes de suas Helenas. “Ele manda livros, com cartas e bilhetes escritos com caneta pena, com uma caligrafia linda. É um processo de você ser a musa, de fato. Ele escreve rubricas no texto, ajuda o diretor a dirigir, os atores atuarem. Ele vai mostrando o que a alma da personagem está dizendo”, conta a atriz, que atualmente está na reprise de Fina Estampa e se prepara para gravar a continuação de Verdades Secretas, de Walcyr Carrasco.
A Helena de Laços de Família coube a Vera Fischer – que disse não ser possível atender à solicitação de entrevista. Na trama, ela disputava o amor de Edu (o então estreante Reynaldo Gianecchini) com a filha Camila (Carolina Dieckmann). A cena em que Camila raspa os cabelos (de verdade) em função da leucemia entrou para a história das telenovelas brasileiras e aumentou o número de doações de medula naquele ano. “Eu fico muito feliz que essa cena, com essa importância para minha vida e carreira, tenha sido, de fato, tão relevante para tanta gente”, diz Carolina.
A atriz também revela a cumplicidade que teve com Maneco, que a acalmou em um momento que sua personagem era odiada pelo público por roubar o parceiro da mãe – a redenção veio com a doença. “Falei: ‘Maneco, o que pode acontecer agora? Será que eu não estou sabendo fazer, será que a implicância das pessoas é comigo e não com a personagem?’. Ele me respondeu muito tranquilamente que tinha certeza que, na hora que ela ficasse doente, as pessoas se colocariam no lugar dela e a situação mudaria. Ele é um gênio, tem muita experiência”, conta. Carolina também está em Mulheres Apaixonadas como Edwiges, personagem que coloca em discussão a questão da virgindade.
Polêmicas. Além da virgindade, outros temas polêmicos aparecem nas tramas de Manoel Carlos em bem-sucedidos merchandising sociais, em que a exposição deles ou de ações educativas os colocam em debate. Em Laços de Família e Mulheres Apaixonadas, aparecem alcoolismo, prostituição, homossexualidade, violência contra a mulher. Em uma cena, Maneco reproduziu um tiroteio em uma rua do Leblon, que culminou com a morte de Fernanda (Vanessa Gerbelli), vítima de bala perdida, baseada em um acontecimento real.
Ricardo Waddington, que foi diretor de núcleo das duas novelas, conta como isso se dava. “Cenas como o corte de cabelo de Camila em Laços de Família, a da bala perdida que atinge e mata Fernanda em Mulheres Apaixonadas, e tantas outras, exigiam que a direção fosse realista para retratar, de forma sensível e real, o drama daqueles personagens. Acredito que a boa e grande repercussão dessas histórias significa que conseguimos sensibilizar as pessoas com o resultado da parceria bem-sucedida entre autor, elenco e direção”, diz o agora diretor de Produção dos Estúdios Globo.
“Apesar de as tramas acontecerem nesse microcosmo muito específico, elas tratam de temas universais, como amor, ciúme, desejo – um arcabouço de histórias que está na literatura universal há muito tempo, que causam empatia. Maneco é um autor clássico, do melodrama”, analisa Lucas Martins Néia, pesquisador, roteirista e apresentador do podcast Isso Só Acontece em Novela.
Ao longo da carreira, Manoel Carlos também esteve envolvido em criações de programas musicais para a televisão. Nos anos 1960, integrou, ao lado de Antônio Augusto Amaral de Carvalho, Nilton Travesso e Raul Duarte, a chamada Equipe A da TV Record, responsável por produzir atrações que envolviam nomes como Elis Regina, Elizeth Cardoso e Wilson Simonal. Isso se reflete nas trilhas sonoras das novelas que assinou. Sempre há, entre músicas contemporâneas, antigas gravações que ganham destaque e ajudam a criar o ritmo das cenas. A partir de Por Amor, de 1997, ficou clara a preferência por bossa nova como tema de abertura. Virou mais uma marca do autor. “Maneco ama música e sempre esteve presente nas escolhas das trilhas de suas novelas. Eu participava também, além da equipe de direção musical da Globo”, confirma Waddington.
Em Laços de Família, a abertura trazia uma gravação de 1964 de Corcovado (Quiet Nights of Quiet Stars), com Astrud, João Gilberto e Stan Getz. Já Samba de Verão, composta pelos irmãos Marcos e Paulo Sergio Valle, no mesmo, ano, porém em gravação de Caetano Veloso, embalava os encontros de Helena e Edu. “Eu gosto demais da gravação, ela é fim de tarde, aquele sol vermelho, as pessoas bonitas. Apesar do sucesso que a canção sempre fez aqui e no exterior, o fato de ter entrado na novela a trouxe para outras gerações”, diz Marcos Valle.
Em Mulheres Apaixonadas, a bossa da vez foi Pela Luz dos Olhos Teus, de Vinicius de Moraes, em gravação de Tom Jobim e Miúcha, de 1977, que apareceu ao lado de outros clássicos da bossa e do samba-canção. “A bossa é o que dá a leveza para as tramas dele, traz o balanço do mar, o céu azul, as caminhadas na orla. Pontua os diálogos, já que as novelas do Maneco são mais de diálogo do que de ação”, diz Moratelli.
Atualidade. O último trabalho de Maneco foi em 2014, com Em Família, sem a mesma repercussão das anteriores e com média de audiência de 29 pontos, segundo dados do Ibope da época – número considerado aquém do esperado para o horário naquele tempo. A trama foi encurtada e o autor enfrentou problemas de saúde enquanto escrevia. Na época, redes sociais como o Twitter já eram um termômetro para a opinião e aceitação dos telespectadores, mas nada comparado a hoje, em que os assuntos polêmicos ganham debates acalorados, cancelamentos e polarizações. E como problemáticas são um dos combustíveis de Laços de Família e Mulheres Apaixonadas, é provável que elas voltem à tona.
Para Walmir Moratelli, as tramas de Maneco trazem alguns personagens datados, como os homens extremamente machistas – além de não representar o que é o Brasil real. “Ele escreve mostrando uma elite. A geração atual, muito alinhada com as redes sociais, não compreende certas narrativas como possíveis de ser vistas sem discussão. Será interessante notar como o público vai se comportar diante de questões que, naquela época, não eram debatidas como agora.”
“Hoje, essas narrativas mais antigas estão com um olhar mais crítico da sociedade, o que é importante. Porém, há uma parcela da sociedade que está mais conversadora, e temas como alcoolismo e homossexualidade foram tratados de forma progressista nessas tramas”, diz Lucas Martins Néia.
Maneco, atualmente com 87 anos, está recluso e, por ora, aposentado dos folhetins diários. Não dá mais entrevistas. Se estivesse na ativa, é provável que incluísse na trama algum diálogo sobre a pandemia. Quem sabe alguma preleção sobre o tema com o Dr. Moretti, personagem tão presente quanto as Helenas; ou uma crise no Nick Bar, onde Téo de Mulheres Apaixonadas tocava sax, por restrições no funcionamento. “Ele é um gênio da crônica do cotidiano. Acredito que as duas novelas tenham ainda muito fôlego para render bons papos, pessoalmente ou nas redes”, diz Waddington.