RIO — A aula acontece nas ladeiras do Morro do Livramento, ao pé da Providência, no Centro do Rio. É ali, diante de uma casa parcialmente demolida, que Pedro Guilherme Freire explica: antes de virar o Bruxo do Cosme Velho, celebrado na Academia e nos salões, Joaquim Maria Machado de Assis foi um garoto pobre do Livramento. Exatamente como muitos de seus alunos. A iniciativa de Freire, professor do Colégio Estadual Caic Tiradentes, na Zona Portuária , reflete um esforço para reconfigurar a imagem do maior escritor do Brasil.
No mês passado, a campanha “Machado de Assis Real” lançou a “primeira errata feita para corrigir o racismo na literatura brasileira”. E recriou a foto clássica do autor, ressaltando suas feições negras . Também criou um movimento para que as editoras deixem de comercializar livros em que o escritor apareça embranquecido. E saiu a campo para encorajar novos escritores negros. Nascido há 180 anos (a data do aniversário é na próxima sexta, 21), o Machado “real” ainda pega muita gente de surpresa.
— É importante dar destaque a esse Machado menos conhecido, que morou no Livramento — diz Freire, que também fundou um curso de pré-vestibular gratuito na região, com o nome do escritor. — Em vários aspectos, ele se parece com os jovens atuais da região, em sua maioria pobres e negros, que acabam largando a escola porque são obrigados a trabalhar cedo.
Também professora da rede pública e conselheira consultiva do Museu de História e Cultura Afro-Brasileira, Elen Ferreira conta que seus alunos negros “ficam desconcertados quando descobrem que Machado de Assis tinha a mesma cor que eles.
— Ver um rosto negro como protagonista da História em sala de aula é algo novo — argumenta ela.
Nascida ali mesmo, na zona portuária, e idealizadora do projeto Pretinhas Leitoras, que promove rodas de leitura para meninas da região, Elen tenta trazer Machado para a realidade de seus alunos, criando paralelos:
— Ele está aí há quase 200 anos, e só agora conseguimos fazer essa relação com os alunos. Além do mais, essa postura ainda é restrita a poucos espaços sociais. Outro problema é ver Machado como um exemplo de meritocracia, achar que todos os jovens daqui podem ser iguais a ele se quiserem, quando na verdade sua trajetória é uma exceção.
Morador da Providência, Luan Domingos da Silva, 25 anos, só foi descobrir que tinha a mesma origem do Bruxo aos 18, quando ingressou no pré-vestibular Machado de Assis. Como o “conterrâneo”, ele teve dificuldade para se manter na escola, equilibrando trabalho e estudos.
— Tive aulas na Providência, mas os professores não traziam esse contexto, de um Machado daqui — diz Luan, que está concluindo o curso de Geografia na Uerj. — Saber que ele morava aqui e era negro, como a maioria dos alunos, nos aproximou dele, além de nos dar uma referência. A gente sabe que ele foi uma exceção. Mas, como muita gente aqui, estava tentando mudar seu destino. Foi assim que percebi que a universidade, tão perto fisicamente, poderia estar perto também do imaginário.
O Livramento de Machado, porém, era um bocado diferente do de Luan. A violência, por exemplo, não chegava a preocupar. A região era uma grande chácara e, acima, no morro da Providência, a favela nem existia ainda. Mas a área já era segregada. Não por acaso, uma das metáforas mais fortes da obra do autor é a “ilha”, como lembra o escritor Silviano Santiago, autor do romance “Machado”, sobre a velhice do Bruxo.
Negro numa sociedade escravocrata, Machado teve que inventar, segundo Santiago, um “projeto existencial” só seu para ascender socialmente. Também contou com algumas oportunidades pouco comuns para alguém de seu meio, como pais que sabiam ler e escrever, e a proximidade com pessoas que puderam lhe ensinar outros idiomas, como latim e francês. Um misto de sorte e genialidade, que o fizeram ser um ponto fora da curva.
— Ele teve que se resolver por conta própria: já que não tinha apoio da escola nem do Estado, empurrou a si mesmo —diz Santiago. — Mas é importante lembrar que estamos falando de um gênio.
Quase 200 anos depois, a trajetória do Bruxo inspira o estudante Charles Gomes, 21 anos, que cursa o pré-vestibular Machado de Assis. Morador da Providência e sonha em fazer faculdade de Geografia, coisa que nem imaginava anos atrás.
— A mentalidade racista está na nossa própria casa, a gente é criado para achar que só serve para o trabalho braçal — conta Charles. — A gente acha que o museu perto da Providência não é para nós, que a biblioteca não é para nós. Mesmo quando é gratuito, achamos que é pago. Está tão perto e ao mesmo tempo tão distante. É como se a cultura não fosse para nós. Ninguém fala, mas a gente sente.