16 de julho de 2020 | 05h00
Todo carnaval tem seu fim, e a festa deste ano foi seguida de uma longa quarentena. Instaurou-se o paradoxo num curto espaço de tempo: da folia do povo nas ruas para o isolamento em casa. Depois de passar o carnaval em Salvador, onde morou por dois meses, Luana Carvalho, já de volta ao Rio, se viu subitamente privada do contato humano. Isso a impediu também de dar andamento ao que seria seu segundo disco de inéditas, feito na multidão. As letras começaram a ser escritas na rua, em bares. Um contraponto a seu álbum de estreia, de 2017, Sul, que, com Branco, forma um disco duplo, e foi todo composto na mesma poltrona, dentro da mesma sala. A pandemia, então, levou a cantora e compositora a seguir outro caminho e a fazer seu disco do confinamento, Baile de Máscara (já disponível nas plataformas digitais), sobre carnaval, quarentena, e que traz em sua essência sua mãe, Beth Carvalho, que morreu em 30 de abril do ano passado, vítima de infecção generalizada.
“Quando a gente entrou na quarentena, esse era o pensamento que vinha: ‘Caramba, carnaval-quarentena’. E aí, escrevendo as letras de algumas músicas que minha mãe cantava, fui identificando essa minha reflexão nessas canções que eu escolhi. Quando vi essas canções escritas num papel, percebi que eu tinha um disco. Quero fazer um disco sobre o carnaval. E para fazer um disco sobre o carnaval e a quarentena, vou trazer minha mãe”, conta Luana, por telefone, em entrevista ao Estadão, do Rio. “Na verdade, é uma homenagem a ela, mas é também, e sobretudo, essa reflexão. Comecei a pensar nas semelhanças também, não só no paradoxo: o carnaval também é um estado de suspensão; que estado de torpor é esse, e o carnaval também é um torpor; e, ao mesmo tempo que é uma coisa por causa de contágio, e o carnaval também é contágio, só que um contágio bom.”
Luana Carvalho, filha de Beth, une álbuns feitos em fases diferentes de sua vida
Com a aproximação da data de um ano de morte da mãe – que durante anos enfrentou sérios problemas na coluna –, Luana pensava em homenageá-la, mas na forma de uma playlist afetiva, com lados A e B, reunindo tudo o que tivesse mais a ver com a história das duas. “A gente tem um compromisso quando é filho de uma pessoa que deixa tanta gente saudosa: não só a família e os amigos, mas o País inteiro, muitos fãs e compositores que dependeram, de alguma maneira, do trabalho dela para ter uma projeção e que são gratos. Como filha, além de um legado que tenho que administrar na prática, existe uma memória que preciso sempre honrar”, afirma ela.
“Só que este primeiro ano de morte foi muito confuso para mim. Ainda há muito coisa para realizar dentro da minha cabeça, de que ela não está mais aqui. Minha mãe teve uma morte lenta. Ela foi definhando. Então, quando vai embora, são muitos os sentimentos, porque tem o lado que a pessoa descansou de uma dor enorme e tem o lado que a pessoa não está mais aqui.” A sensação é de ter perdido a mãe ao longo dos anos, descreve a cantora.
“Fui perdendo uma mãe que anda, depois perdi uma mãe que senta, depois perdi uma mãe que pode vir até mim, depois uma mãe que canta em pé, depois uma mãe que canta sentada, depois uma mãe que canta deitada. São muitas perdas. Então, quando parte de vez, até você entender a diferença entre cada uma dessas pequenas perdas e essa perda geral, acho que ainda tem muito tempo para eu registrar isso dentro do meu corpo. Existe uma presença importante em mim que é o que fica dela, mas eu estava em frangalhos. Aí falei: vou fazer uma coisa em que não preciso aparecer. A princípio, era isso que eu ia fazer. Mas, ao fazer a playlist, fui me dando conta de uma série de coisas.”
Nesse mergulho na obra de Beth Carvalho, as letras de algumas canções do repertório da sambista despertaram a atenção de Luana, ao serem vistas sob o prisma dos dias de hoje. Há uma atualidade nelas que comoveu a cantora – e fazia sentido dentro de suas reflexões. Assim, no campo do tributo, a playlist com gravações de Beth deu lugar ao álbum Baile de Máscara, com regravações de seis músicas sobre o carnaval – mas “não necessariamente sambas de carnaval” –, na voz de Luana Carvalho, com produção de Kassin, colaboração de VovôBebê no violão e na guitarra, e participação de músicos como Pretinho da Serrinha. Todos dedicados ao projeto a distância.
Essa história começou com Meu Escudo (Décio Carvalho/Noca da Portela), que, no disco, é interpretada com a voz terna e intimista de Luana, numa levada de samba tradicional. “Para suportar um mundo de desilusão/Vou usando como escudo o meu coração”, diz o início da faixa, que, não por acaso, é a que abre o disco. Atemporal e atual. “É exatamente o que tenho para dizer hoje, sobre nossa situação sociopolítica e cultural”, diz ela. “Falei: preciso dizer isso porque sou eu agora, porque há muito ódio por aí e tenho muito amor para dar.”
Minha Festa, sucesso na interpretação de Beth Carvalho, também foi uma peça importante para a construção do disco. Os seguidores de Luana no Instagram começaram, por acaso, a pedir para ela cantar Minha Festa. A música ficou no radar da cantora – e entrou no repertório fechando o álbum. “Graças a Deus, minha vida mudou/Quem me viu, quem me vê/A tristeza acabou”, ela canta no começo da canção. “Minha Festa faz sentido, porque é a única música alegre do Nelson Cavaquinho (em parceria com Guilherme de Brito), sendo que ele é um homem claramente mórbido. Então, tem tudo a ver com o que estou pensando, do carnaval com a quarentena, do que a gente vem vivendo entre posts de amor e gente morrendo, esse contraste louco.” Há um certo tom de melancolia nessa letra esperançosa. E a voz de Luana que ganha efeito eletrônico ressalta isso de alguma forma, assim como o arranjo nada purista de Kassin, e suas programações.
“O Kassin sabe muito de samba, ele é um pesquisador viciado. Sabe tudo sobre minha mãe, é muito digna a maneira com que ele subverte e eu tinha certeza que seria assim, não tem ofensa nenhuma. Acho que até minha mãe, que sempre foi purista, se ouvisse, ia achar bonito o que ele fez, porque realmente existe um respeito grande, ele sabe o que estava fazendo nas subversões, ele conhece o original. Acho que, para você subverter, tem que conhecer muito o tradicional”, comenta Luana, sobre a atuação – e as licenças poéticas – do produtor nos arranjos.
Há um momento particularmente emocionante em Baile de Máscara, na versão da canção Visual (Neném/Pintado), que reúne três gerações da família Carvalho: Beth, Luana e sua filha, Mia. Beth e Luana fazem um dueto virtual, enquanto Mia surge no finalzinho da canção falando o que carrega no coração: “Te amo, vovó”. “É uma canção que amo há muito tempo e o Kassin também, coincidentemente. Minha mãe tem uma característica muito específica que são as chamadas: tudo tem um ‘disse’, ‘é’. Minha mãe comenta muito as músicas, as estrofes, os versos, ou ela chama ou ela comenta”, diz Luana. E Visual é um prato cheio nesse sentido. No dueto, Beth chama, Luana emenda, e assim as duas seguem na canção. “Chamar o coro é uma coisa histórica, mas a quantidade de vezes que ela faz e da maneira que ela faz é algo só dela mesmo.”
Mais do que uma homenagem, Baile de Máscara é uma bela declaração de amor a Beth Carvalho, feita ao estilo de sua filha, que tem uma ligação forte com o samba, mas que criou sua identidade. “O que ela fez não precisa ser feito de novo, é perfeito”, afirma Luana. “Então, para fazerem sentido, elas precisam ter um propósito, e é por isso que elas têm: essa minha reflexão sobre o carnaval e a quarentena, e minha homenagem a ela; e serem feitas de um jeito que é meu, se não, faço só a playlist.”