André Cáceres, O Estado de S.Paulo
19 Dezembro 2018 | 04h30
Um homem alquebrado pelo luto; um jovem pintor em busca de inspirações; um matador de aluguel diante da tarefa de tirar a vida da própria amada. Esses argumentos poderiam motivar histórias comuns, não fosse pelo fato de o viúvo ter uma modificação cerebral para amar incondicionalmente sua mulher que o faz ter impulsos suicidas após a morte dela; o pintor adentrar uma realidade lisérgica desdobrada em formas geométricas; e o assassino estar em um cenário futurista e tecnológico. Esses são alguns dos contos presentes na coletânea Fractais Tropicais (Sesi-SP), que reúne 30 dos melhores autores da ficção científica brasileira. Nesta quarta, 19, o organizador Nelson de Oliveira debate o assunto com os escritores e pesquisadores Roberto de Sousa Causo, Ivan Carlos Regina e Ana Rüsche na livraria Tapera Taperá, em São Paulo, às 19h.
No romance A Cidade & a Cidade, de China Miéville, duas metrópoles ocupam o mesmo espaço físico, mas são invisíveis entre si. Quem vive em uma é obrigado a “desver” os edifícios, carros e habitantes da outra. Essa seria uma boa analogia da relação entre a ficção científica e a literatura dita mainstream no Brasil. “Se é ficção científica, a academia não gosta. Se gostou, não vai aceitar que seja ficção científica. Mas a gente não lê porque tem naves e sim porque são boas histórias”, afirma Bárbara Prince, editora da Aleph, uma das principais casas de FC no País. “É o gênero que mais tem dialogado com pautas relevantes da realidade hoje.”
Há relatos proto-FC desde a Antiguidade, como a História Verdadeira, em que Luciano de Samósata narra uma viagem ao espaço no século 2. Mas o gênero como o conhecemos hoje foi formatado há 200 anos, com Frankenstein ou o Prometeu Moderno, clássico de Mary Shelley. No Brasil, o primeiro texto do tipo é Dr. Benignus (1875), do luso-brasileiro Augusto Emílio Zaluar (1825-1882). Como nota Nelson no prefácio, a FC nacional se divide em três “ondas”: uma nos anos 1960, capitaneada pelas Edições GRD, de Gumercindo Rocha Dorea, pioneiro na publicação sistemática do gênero no País; a segunda, impulsionada pelas fanzines nos anos 1980; e a terceira, que se desenrola atualmente na internet, com editoras dedicadas exclusivamente à FC e, mais recentemente, com casas editoriais maiores que entraram nesse mercado.
Dinah Silveira de Queiroz (1911-1982), que ocupou a cadeira 7 da Academia Brasileira de Letras, é uma das pioneiras da FC no Brasil. Em seu conto na antologia, A Ficcionista(1969), ela imagina uma espécie de inteligência artificial avant la lettre que contém todas as histórias imagináveis, ameaçando a existência de escritores – quase uma previsão sobre big data.
Os temas explorados no livro vão desde questões como essa, que migraram da FC para o noticiário, até preocupações filosóficas e existenciais como viagens no tempo ou realidades alternativas. E se você pudesse voltar no tempo e se apaixonar pelo seu eu do passado? É isso que Ivanir Calado questiona no conto O Paradoxo de Narciso (1991), com um desfecho angustiante para o(s) protagonista(s).
Em um dos pontos altos da antologia, O Molusco e o Transatlântico (2005), Braulio Tavares imagina com lirismo um astronauta com habilidades telecinéticas que se vê capturado por uma espécie inimaginavelmente mais avançada que a humanidade e se torna uma cobaia desses alienígenas – cabe ao leitor, pelas memórias do protagonista, decidir se esse destino é bom ou ruim.
Fractais Tropicais prova que os autores brasileiros não devem nada aos estrangeiros e sinaliza que talvez a barreira entre a FC e a literatura “séria” seja apenas, como no livro de Miéville, uma questão de miopia.
Entrevista com Gerson Lodi-Ribeiro
Em 1.º de dezembro, Gerson Lodi-Ribeiro, autor que também está na antologia Fractais Tropicais com seu conto Coleira do Amor, venceu a edição 2018 do Argos, principal premiação da literatura fantástica no Brasil, com seu livro Octopusgarden (ed. Draco). Leia a entrevista exclusiva ao Estado:
Existe mais interesse pela ficção científica brasileira hoje?
Há um boom da literatura fantástica que começou em 2009. Hoje, estamos lançando mais livros escritos em português em vez de meras traduções do que dez anos atrás. Mas sinto que o horror e sobretudo a fantasia ainda são mais fortes.
A FC sempre foi o ‘primo pobre’ da literatura fantástica?
Nem sempre foi assim. Na década de 1970, vendia-se muito mais FC, talvez porque o paradigma da época era 2001: Uma Odisseia no Espaço. Mas não se vendia quase nada nacional, ao passo que, desde 2009, é muito mais fácil publicar e vender FC. Eu só consegui publicar meu primeiro livro no Brasil em 2006, depois de lançar dois em Portugal.
Como você vê essa nova leva de autores nacionais?
Há muitos bons autores surgindo, que eu leio e fico empolgado como fã e como autor mesmo, como o Cirilo Lemos, a Cristina Lasaitis, e até autores que não foram contemplados pelo Fractais Tropicais, como o escritor pernambucano Jacques Barcia