09 de junho de 2021 | 05h00
O trabalho infantil no Brasil desapareceu na pandemia de covid-19? Apenas aos olhos dos mais privilegiados ou daqueles que conseguiram migrar totalmente para as atividades em home office. Mas as lentes do fotógrafo Tiago Queiroz, junto com a apuração da jornalista Bruna Ribeiro, que tem um blog no Estadão, registraram, nos faróis, nas lanchonetes e nas plantações pelo País, crianças que tentam sobreviver ganhando o próprio dinheiro, seja para garantir o alimento do dia ou para ajudar a família. Dez histórias são retratadas no livro Meninos Malabares – Retratos do Trabalho Infantil no Brasil lançado nesta quarta-feira, 9, pela Panda Books. São jovens equilibrando cones e tochas nos semáforos, limpando túmulos de cemitérios por uns trocados ou em oficinas de costura.
As pesquisas para a obra começaram em 2016 e o agravamento do trabalho infantil e da exclusão escolar ficaram explícitos quando começou a pandemia. “Todas as crianças e adolescentes entrevistados a partir de março de 2020 estavam fora da escola e não acompanhavam as aulas online por diversos fatores, como dificuldade de acesso à internet e a própria necessidade de trabalhar. Essas pessoas não se profissionalizam na vida adulta e são condenadas à reprodução do ciclo da pobreza, além de ficarem expostas a violências físicas, psicológicas e sexuais”, ressalta Bruna Ribeiro.
O fotógrafo Tiago Queiroz se recorda de notar crianças trabalhando em feiras livres na infância dele. “Esses meninos trabalhavam carregando os carrinhos das mulheres ladeira acima do meu bairro. Observava aquele movimento e queria também fazer parte daquilo, ter meu próprio dinheirinho para o sorvete ou para o pastel. Tive a sorte de ter pais que não me deixaram ir, ou melhor, que não precisavam que saísse em busca de meu próprio sustento”, conta.
Mais de 20 anos de fotojornalismo colocaram Tiago em contato com essa realidade diversas vezes, como em 2015, quando retratou meninos que trabalhavam pintando o corpo de prata para se apresentarem nos faróis de São Paulo. “Alguns faziam malabares nos semáforos da estação Armênia e outros pulavam os muros da estação de metrô e iam de vagão em vagão, de linha em linha, distribuindo papeizinhos pedindo algum dinheiro. Inclusive na primeira história que publicamos no livro (Meninos Malabares) voltei nesse local e encontrei outro grupo, mas com roupas de palhaço. Observei que são crianças impelidas a ir para as ruas, pelas condições econômicas precárias de suas famílias e também por uma questão cultural muito forte no Brasil de que "é bom que as crianças aprendam a trabalhar cedo". Fui influenciado por um ensaio de um grande fotógrafo, o chileno Sergio Larrain, que registrou um grupo de crianças em situação de rua em Valparaíso, e não posso deixar de mencionar uma grande inspiração aqui no Brasil, Lilo Clareto, um ex-fotojornalista do grupo Estado, morto recentemente, mais uma das milhares de vítimas da covid-19”, afirma.
Bruna Ribeiro passou anos construindo vínculo com as crianças entrevistadas e suas famílias. “Eu pesquiso o tema desde 2016, quando comecei a escrever para o projeto ‘Criança Livre de Trabalho Infantil’. A relação de confiança com as fontes estabelecida ao longo dos anos foi essencial para o acesso às famílias. Nas formas de trabalho infantil em propriedades privadas ou em comunidades, como oficina de costura, lixão e no campo (plantação de palmito), o trabalho de produção foi mais elaborado. Contei com o apoio das minhas fontes do projeto e com organizações da sociedade civil parceiras. No caso de malabares, praia e feira nos aproximamos contando sobre o nosso projeto. Muitas vezes realizamos mais de uma visita para o fortalecimento do vínculo”, explica a autora.
As fotos não mostram os rostos e todos os nomes são trocados, para preservar a identidade dos entrevistados. Durante a pandemia, o impacto da crise humanitária e econômica foi devastador no Brasil e passamos a enfrentar a fome. O último capítulo do livro, intitulado ‘A Pandemia e a Mendicância’ conta histórias de crianças e adolescentes que vão em busca de alimentos e doações.
“Enquanto muito se falava sobre a importância do isolamento social, não havia outra alternativa para essas crianças a não ser sair às ruas. Essa realidade que retratamos de forma sensível e humana, a partir de histórias reais, vem sendo comprovada por estudos e análises de profissionais do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente e de instituições atuantes na área”, ressalta Bruna Ribeiro. Um estudo realizado pelo Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) revelou que o número de crianças em situação de trabalho infantil aumentou 26% entre os meses de maio e julho de 2020 em São Paulo. O que é uma verdadeira ironia, pois a Organização das Nações Unidas (ONU) declarou 2021 o ‘Ano Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil’.
“Um dia, em meados do ano passado, eu presenciei um grande grupo de crianças pedindo dinheiro em um semáforo de uma grande avenida de São Paulo. Me chamou a atenção que algumas usavam máscaras, outras não. Elas me disseram que haviam ganho de um dos motoristas abordados. Com exceção disso, elas continuam ainda se arriscando e circulando em busca de dinheiro e meios de sobrevivência. Nunca houve o "fique em casa" para as camadas mais pobres da população brasileira, a verdade é essa”, avalia o fotojornalista Tiago Queiroz.
Um levantamento divulgado em abril de 2021 pelo UNICEF em parceria com o Cenpec Educação revela que mais de 5 milhões de brasileiros de 6 a 17 anos não tinham acesso à educação no Brasil em novembro do ano passado, número semelhante ao que o País apresentava no início dos anos 2000. “Acredito que um dos papéis do jornalismo e do fotojornalismo é jogar luz a temas por vezes indigestos, mas que precisam ser falados. O trabalho infantil em nosso País certamente é um deles. Espero de verdade que o livro, com suas reportagens mostrando crianças trabalhando em cemitérios no dia de Finados, em pequenas fábricas de costura, no campo, nas feiras-livres, nas praias, sensibilize a sociedade. Qual o futuro que estamos reservando para esses pequenos cidadãos?”, conclui Tiago Queiroz.