CAINDO NA GANDAIA
Raimundo Floriano
APRESENTAÇÃO
2016! 80 anos! Com a Graça de Deus, aqui cheguei, procurando nunca deixar passar em branco o tempo de vida que Ele continua me concedendo!
Iniciei-me na leitura lúdica, extracurricular, muito cedo, para um menino do sertão, onde não havia livrarias. Aos 10 anos de idade, em 1946, ganhei o primeiro romance, A Volta de Tarzan, de Edgar Rice Burroughs; no ano seguinte, Memórias da Emília, de Monteiro Lobato, ambos presentes de meu irmão Bergonsil.
Daí pra frente, mergulhei de ponta-cabeça na Literatura, contabilizando, hoje, cerca de 1.500 obras lidas, além da produção de quase 400 crônicas, um monte de revisões, prefácios, orelhas, críticas para amigos e o lançamento de seis livros: Regras de Pontuação e Sinais de Revisão, em 1977; O Acordo PDS/PTB, em 1981; Do Jumento ao Parlamento, em 2003; De Balsas para o Mundo, em 2010; Pétalas do Rosa, em 2013; e Memorial Balsense, em 2015.
Seis livros! Realização hercúlea! Falar nisso, seis rebentos que valem muito mais que os Doze Trabalhos de Hércules, estes resultantes apenas da força muscular, ao passo que os livros advieram do esforço intelectual, da queimação da massa cinzenta, do muito pensar.
Na marcha do tempo, seis dias de intenso labor. Chegando ao sétimo, está na hora de descansar, como recomenda o Criador do Universo.
E nada melhor que repousar na alegria, no riso, no bom humor de uma história picante, engraçada, que nos faz esquecer as agruras do dia a dia. Já disseram há muito tempo: rir é o melhor remédio!
Neste livro, realizo um desejo há muito sonhado: retornar os tempos de outrora, relembrando os circos que conheci na infância e na adolescência, chegando até a trabalhar num deles, resgatando piadas, versinhos de inesquecíveis Palhaços, e também homenagear os Velhos dos Pastoris, atores que até os dias de hoje batem ponto nos tablados nordestinos, com suas cançonetas, charadas e muito mais.
Sou do tempo em que os Palhaços tinham nome. E eram os ídolos da criançada. Por isso mesmo, ao se apresentarem, aplaudidos, não só pela meninada, como pelos pais e mães que acompanhavam a filharada para cada espetáculo, pegavam leve em seus esquetes, sem jamais chocar as famílias ali presentes.
Quando muito, faziam gestos ao dançarem com as rumbeiras, segurando suas cadeiras e, depois, lambendo os dedos, o que ouriçava a imaginação da molecada. Nas paródias e emboladas, deixavam que a rima produzisse na cabeça de cada um a malícia subentendida.
Os Palhaços de meu tempo sempre entravam no picadeiro entoando umas quadrinhas apimentadas, que ficaram em nossas memórias para sempre:
O cachorro quando late
No buraco do tatu
Bota escuma pela boca
E chocolate pelos zói
Um velho mais uma velha
Foram tomar bãe na bica
A velha escorregou
E o velho passou-lhe a toalha
Menina namoradeira
Gosta de beijo e abraço
Depois fica aí chorando
Porque perdeu o caderno
Mulher bonita e faceira
É pior do que boi brabo
Se o boi tem força no chifre
Ela tem força no olhar
Faca de ponta
Espingarda, baioneta
Nunca vi coisa tão dura
Como couro de butina
Minha mãe, quando eu morrê
Me enterre lá no quintá
Debaixo da goiabeira
Aonde as moças vão me vê
No ano de 1945, logo depois do final da Guerra, passou lá por Balsas uma trupe mambembe, cujas principais atrações eram a famosa e estonteante rumbeira Marquise Negra e os Palhaços Zé Gaiola e Picolé.
Zé Gaiola era um bamba na paródia. Feijoada, calcada num popular foxtrote americano, em que ele se fazia acompanhar por Picolé ao violão, passou a integrar o repertório musical de todo menino sertanejo daquele tempo:
FEIJOADA
Aqui está
O Zé Gaiola lá do Ceará
Que viu as coisas lá da capitá
Só inda lhe falta vê o má
Vê o má, vê o má
A Joana
Ficou doente lá em Messejana
Por via duma penca de banana
Que ela engoliu nesta semana
Açude de Orós
Açude de Orós
Ficou nisso sós
Ficou nisso sós
As ruas e praia
São fogo de paia
Por isso mesmo é que não estou
De conversa não
Tô na cidade e não vou pro sertão
Lá ta morrendo de fome os cristão
Sem um caroço de feijão
Eu inté
Me hospedei enriba dum oité
Que fica lá bem pertinho do céu
E vi São Pedro de bonéu
De bonéu, de bonéu
Lá de riba
Vi Teresina, Oropa e Paraíba
Vi uma véia lá em Macaíba
Tomando chá de copaíba
Mas esse povo
Tem ũa mania danada
Qualquer coisinha que sente
Vai tomar limonada
Ainda ontonte eu tava empanzinado
Aí tomei o tal de apreparado
Quando afrouxei foi mesmo que tesoura
Inté canhão-metraiadora
E feijoada
É uma comida lascada
Comida de madrugada
Deixa a barriga inchada
Inda isturdia a Fredegunda
Sentiu um repuxo
Ũa roncadeira no paiol do bucho
Ũa estraladeira, pareceu cartucho
Foi caso sério e não foi luxo
A malícia, a interpretação, bem como a rima fescenina, ficavam a cargo do espectador, da plateia, eis que os Palhaços insinuam, mas nunca chegam aos finalmentes.
Já com os Velhos dos Pastoris, a coisa muda de figura. Apresentando-se nos bairros das periferias, noite adentro, tendo como público adultos fissurados na sacanagem, botam pra quebrar mesmo. Chamam as Pastoras no centro, e o desbocamento é sua marca registrada.
No início dos Anos 1990, ensaiei com minhas duas filhas, uma de 7 anos de idade e a outra de 5, um teatrinho em que mesclava o pregão dos Palhaços nas ruas, anunciando o espetáculo, com a irreverência do Velho do Pastoril, que foi filmado por meu sobrinho Maurício e, hoje, transformado em youtube, se encontra na Internet à disposição de todos:
Neste sétimo trabalho, o do descanso, o da gandaia, incorporo as personalidades do Ajudante de Palhaço Seu Mundinho, que fui, no Circo Cometa do Norte, em 1956, e do Velho Fulô, que venho sendo desde há muito e para sempre, como os leitores poderão comprovar nos temperados Versos Sacânicos. Botando a cara na janela, realizo sonho que, da infância, se prolongou, fortalecendo-se cada vez mais, até a octogenariedade. Como no circo, aqui vocês não encontrarão novidade alguma. A magia circense é resumida nisto: tudo é repetição, o que se renova é a plateia.
Os assuntos, por serem estanques e de igual importância, aparecerão em ordem alfabética.
Espero que gostem!
Seu Mundinho e Velho Fulô