18 de setembro de 2020 | 05h00
Pela polêmica que o filme francês Lindinhas, disponível na Netflix, vem causando, a gente espera ver cenas muito fortes. Mas, que nada, o longa da francesa, de origem senegalesa, Maïmouna Doucouré, jamais é apelativo ou irresponsável no tratamento de seu tema principal – a erotização precoce das crianças. Não há nele qualquer intenção pedófila ou cena de nudez explícita. Estas são apenas sugeridas, quando uma das personagens joga na rede um nude para “causar” entre seguidores.
A história tem por foco a garota Amy (Fathia Youssouf), de 11 anos, que chega com a mãe a um bairro da banlieue parisiense e tenta se enturmar com outras meninas da vizinhança. Encanta-se com um grupo de garotas de sua idade que se preparam para um concurso de dança. Enquanto isso, enfrenta um ambiente tóxico em casa, com a mãe desesperada ao saber que o marido arrumou nova mulher e com ela vai se casar. Em sua cultura, a poligamia é aceita, mas não deixa de ser uma experiência dolorosa.
Amy não se enquadra nesse conflito entre culturas, pois, com a flexibilidade da idade, parece perfeitamente assimilada ao seu país. Faz parte desse grupo multiétnico da França atual e sua melhor amiga é Alice, de origem hispânica.
De shortinho e top, elas se inspiram em vídeos de dançarinas adultas na internet. É um processo imitativo, próprio dos nossos tempos, em que crianças têm acesso a qualquer conteúdo, desde que disponham de um smartphone conectado à rede. O que fazer então? Decretar uma censura universal a pretexto de barrar o acesso a conteúdos indesejáveis? Esse é o desafio dos moralistas, e como não se vislumbra solução à vista, de vez em quando elegem algum filme ou obra de arte como bode expiatório para mostrar que ainda estão vivos.
Como filme, Lindinhas (do original francês Mignonnes, ou Cuties, em inglês), adota uma linguagem francamente realista, com câmera bastante móvel no acompanhamento das personagens. É muito ágil e trabalha com roteiro bem articulado. Flagra problemas do crescimento e vulnerabilidade infantil em uma área carente (embora bairros carentes de países com a França pareçam paraísos ao lado dos nossos). De qualquer forma, há no ar uma falta de perspectiva sentida pelos adultos, um ranço de futuro incerto, e isso não deixa de se refletir sobre a vida das crianças.
Elas também desejam – e de maneira precoce – ganhar seu lugar ao sol na sociedade de consumo e do espetáculo, e usam seus recursos para chegar lá. Os concursos de dança infantis, explicitamente erotizados, buscam carne fresca e oferecem em troca os holofotes da fama. Mesmo que essa fama se contabilize apenas em número de likes e seguidores nas redes sociais, o que já parece bastante coisa hoje em dia. O desfecho (que não cito para não dar spoiler) pode até ser considerado meio conservador.
A diretora parece se recusar a dar lições de moral e procura apenas entender as motivações e os desejos daquelas garotas. Concentra-se na vida familiar e nas relações de amizade e não visa a um espectro mais amplo de análise, talvez para não parecer didática ou maniqueísta. Mas, se alguma coisa falta ao filme, talvez seja uma contextualização maior, um entendimento do tipo de organização social em que coisas desse tipo acontecem. O tom é francamente crítico em relação a esse estado de coisas, e é preciso um senhor déficit cognitivo para enxergar no filme apologia a seja lá o que for.