14 de junho de 2021 | 05h00
Tudo que guardamos e passamos em nossa trajetória está arquivado em nossas memórias e nas marcas que o tempo se encarregou de tatuar em nossa pele. Cada ruga ou cicatriz nos remete a alguma história que pertence à nossa história. Cada indivíduo carrega tais lembranças de forma particular. Esse é o caso dos bailarinos, que carregam sua história de vida e suas experiências incrustadas no próprio corpo. O que dizer de uma artista que já conta 45 anos de carreira e que ainda hoje se renova e transborda alegria em poder passar aos mais jovens a sua experiência? Apesar de aposentada dos palcos, Ana Botafogo, 63 anos, não se distanciou de sua arte, pelo contrário. A brasileira de renome internacional une seu conhecimento com a São Paulo Companhia de Dança (SPCD), para a qual preparou a remontagem da coreografia clássica Les Sylphides (Chopiniana), junto com Inês Bogéa, e que será apresentada entre os dias 17 e 20, no Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo, com público presente, mas também com exibição online ao vivo. Para Ana, “a dança é oxigênio, é vida, é a mola que me fez sempre ver a vida positivamente”.
Ana Botafogo celebra 35 anos de carreira com balé em SP
Um dos maiores nomes dança, Ana Botafogo tem uma trajetória de sucesso. Dedicada ao mundo da dança clássica, a bailarina conquistou o público com sua atuação em inúmeros espetáculos, como Copélia, O Quebra Nozes, Giselle, O Lago dos Cisnes, A Bela Adormecida, Zorba, o Grego, A Megera Domada, Eugene Onegin, entre outros.
Segunda ela, as grandes companhias de balé costumam ter várias primeiras-bailarinas e bailarinos, o que também ocorre por aqui. “Eu me juntei a grandes nomes que já estavam no Municipal como primeiras-bailarinas”, afirma a dama dos palcos, enumerando algumas colegas que também estiveram no mesmo cargo no teatro. “Estavam ali, quando entrei, nomes como Nora Esteves, Cristina Martineli, Alice Colino. Depois de mim, entrou Cecilia Kerche. Juntas, nós assinamos a direção do Corpo de Baile do Municipal”, relembra Ana, que completa dizendo que há, também, homens ocupando esse posto.
Curiosidades como esta, entre tantas outras que envolvem o balé clássico, estão nos passos dados por Ana Botafogo nessa sua longa trajetória. Ainda criança, ela começou a dar suas primeiras piruetas e, com apenas 11 anos, estava experimentando a emoção do palco. Foi assim que se lançou ao mundo, passando um período na França de onde retornaria para ocupar seu lugar de destaque no Municipal do Rio. “Essa foi a casa que me acolheu e me possibilitou tantas alegrias e realizações. Era um sonho antigo estar ali”, revela a bailarina, que se diz agradecida por ter conseguido se “realizar como artista”.
Nessa trajetória consagrada, com premiações nacionais e internacionais, Ana Botafogo não se limitou à dança e se arriscou como atriz ao participar da novela Páginas da Vida, de Manoel Carlos, em 2006.
Mas a sua vida é a dança e dela não se distanciou, agregando inúmeros trabalhos que a colocaram em um patamar diferenciado, ao lado de outros grandes nomes da categoria. “A dança sempre foi minha vida, já não me lembro da minha vida sem a dança”, reflete Ana, que revela ter um livro de memórias vindo por aí, com lançamento previsto para o segundo semestre. Trata-se de uma obra que tem como base “uma grande pesquisa feita pelo meu pai”, afirma a orgulhosa filha. “Ele foi fazendo e, com o material garimpado, acabou indo além do esperado. Assim, conta também um pouco da história do balé no Brasil, além do meu período na França”, diz.
Entre seus incontáveis trabalhos nas pontas dos pés, Ana teve a possibilidade de estar ao lado de bailarinos também renomados, como Fernando Bujones, Júlio Bocca e Richard Cragun, para citar alguns. Experiente, Ana revela profundo conhecimento sobre o balé clássico. Tanto é que esse espetáculo com a SPCD veio também por ela mesma ter dançado Les Sylphides diversas vezes. “Tive oportunidade de dançar esse balé não só aqui no Rio de Janeiro, mas também tive um convite para fazê-lo em Londres, no Royal Ballet”, afirma. Segundo a bailarina, ela contou com a importante ajuda de uma profissional gabaritada para atingir essa visibilidade. “Fui muito preparada por uma pessoa que entende muito dessa coreografia, a grande mestra do balé nacional, e mundial, que é a dona Tatiana Leskova”, enfatiza Ana. “Ela montou muitas vezes e também teve a oportunidade de dançar esse balé”, afirma. Sobre a obra em questão, conta que se trata de uma peça sem uma história. “Les Sylphides é um balé extremamente clássico e, na época (1909), foi tido como moderno, pois já trazia muitos desenhos coreográficos do próprio corpo de baile”, diz a coreógrafa. “O espetáculo mostra os sonhos de um poeta e as sílfides são nada mais que o momento dessa inspiração.”
Imunizada com as duas doses da vacinada contra a covid-19, Ana Botafogo se diz feliz por poder agora superar esse desafio de montar um espetáculo de dança e apresentá-lo para o público de casa e também para o que estará presente no teatro. “Para qualquer artista isso é, neste momento, um presente.”
Criada em 2008, a São Paulo Companhia de Dança, corpo artístico da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado, se firmou no cenário das artes e se mantém como um grupo que vive em busca do diálogo entre gerações, como afirma sua diretora Inês Bogéa. Prova disso é a parceria que faz agora com a carioca Ana Botafogo, primeira-bailarina do Theatro Municipal do Rio. “Há um tempo, convidei Márcia Haydée para fazer sua primeira criação para uma companhia brasileira, e agora foi a vez de ter a Ana, que prepara sua primeira remontagem”, conta Inês, acrescentando que também chamou o coreógrafo Lars Van Cauwenbergh para fazer outra remontagem – no caso, Giselle. “Eu acredito que esse encontro de gerações seja muito importante para a transmissão da essência dessas obras que encantam o mundo há longo tempo”, diz.
A coreografia escolhida para Ana Botafogo é a Les Sylphides (Chopiniana), criação do russo Michel Fokine, em 1909, com músicas de Chopin, e que a brasileira teve a oportunidade de encenar algumas vezes. “Ana tem, em seu corpo, uma série de informações e conhecimentos como bailarina, que agora vai ajudá-la a remontar essa obra a partir da sua visão”, avalia Inês Bogéa. “Essa obra que estamos criando juntas tem essa essência do balé que foi criado por Fokine”, conta diretora, destacando que será uma forma de montar essa obra, que faz parte do repertório canônico e vem repercutindo no tempo, mas com olhar do século 21. “Ela tem figurino da Tânia Agra, que foi repensado para hoje, com as tecnologias atuais”, conta. E traz ainda, segue Inês, com a iluminação de André Boll e cenário de Fábio Namatame, um diferencial para o espetáculo.
Além das remontagens, a SPCD apresentará coreografias contemporâneas, que fecham cada noite. Assim, de 17 a 20 de junho, após Les Sylphides, o grupo encena a coreografia Só Tinha de Ser com Você, de Henrique Rodovalho; e, de 24 a 27, depois de Giselle – Ato II, vem Agora, de Cassi Abranches.
Claro que, em momento de isolamento social, montar um espetáculo de dança exigiu o máximo de cuidado, o que foi seguido rigorosamente pelos envolvidos. Todos passam por testes constantes para covid, mantêm distanciamento, máscara em tempo integral, que só é retirada no momento da apresentação, sendo mantida nos ensaios, e o teatro seguirá os protocolos do Plano São Paulo – duração aproximada de 1 hora, sem intervalo, e ocupação limitada. Para o público de casa, a transmissão será pelo canal do YouTube da SPCD e na plataforma CulturaEmCasa.
E ainda, como relata a diretora, esse foi um trabalho diferente de tudo que já fizeram e que exigiu a busca por alternativas, pois se trata de uma apresentação híbrida, com dois públicos diferentes, por causa da pandemia. Um dos desafios, como conta Inês Bogéa, foi o de reinventar o “intervalo”. Como ela explica, “pela primeira vez vamos transmitir ao vivo os bastidores”, que permitirá que todos acompanhem o “acontece quando acaba uma coreografia e a outra tem de ser iniciada”. Assim, o público não vai precisar sair de onde está e ainda vai poder ver algo que não é usual.