O ano era 1969. Emílio Garrastazu Médici assumira a presidência do País em outubro, inaugurando o período mais violento da ditadura militar, que foi chamado pelos historiadores de “os anos de chumbo”, tantas foram as torturas e mortes. Mas, para não dizer que não falei das flores, no mês seguinte à posse, houve Leila Diniz em “O Pasquim”.
A atriz respondeu sobre quase tudo — da perda de sua virgindade ao trabalho com o cineasta Nelson Pereira do Santos — em uma conversa que fez dela “a imagem da alegria e da liberdade”, como diz o lead da entrevista. Depois de muita sinceridade e dos 72 asteriscos que substituíram seus palavrões, Leila perdeu trabalhos, teve que se apresentar ao DOPS , e a ditadura instaurou a censura prévia à imprensa, que passou para a História como “o decreto Leila Diniz”.
Mas, 50 anos depois de a entrevista arrepiar os cabelos dos militares, da "tradicional família brasileira" e até mesmo do movimento feminista, como encarar o mito Leila Diniz?
Voltemos ao “Pasquim”: a atriz foi entrevistada por seis homens brancos, uma falta de diversidade que, hoje, seria impensável até mesmo na “Playboy”. O resultado foram mais de 20 perguntas relacionadas à sua vida amorosa, entre elas “Quantos casos você já teve?”; “Vai ter strip tease?”; “Há alguma diferença sexual do negro pro branco?”; "Você deixou de ser virgem quando?" e “Você deu pro seu analista?”.
Leila ainda é chamada de “mulherzinha do Domingos” (o diretor Domingos de Oliveira, com quem ela teve um relacionamento de três anos) e “professorinha”. A este último, ela rebate: “Professorinha uma (*). Fui professora.” E é justamente aqui que reside seu fascínio: ela não se intimida, conversa de igual para a igual, passa por cima do machismo e se afirma com coragem e liberdade.“ “Você pode amar muito uma pessoa e ir pra cama com outra””
Liberdade que Leila esbanja ao tratar de sua sexualidade: “Na minha caminha, dorme algumas noites, mais nada”; "Quando eu quero, eu vou com o cara" e “Você pode amar muito uma pessoa e ir pra cama com outra”. Para entender a importância do discurso de Leila, basta pensarmos no que se diz ainda hoje sobre uma mulher que fala de sexo como algo tão essencial e natural. Reflitam.
Aqui vale um parêntese. O comportamento libertário de Leila Diniz foi criticado por integrantes do movimento feminista. Explica-se: a pauta da segunda onda feminista, que começou nos anos 1960 e se estendeu até a década de 80, estava concentrada na conquista de um lugar para as mulheres no mercado de trabalho e no combate às desigualdades legais, políticas e econômicas existentes no País e à violência doméstica. Em meio ao machismo e à misoginia dos ambientes profissionais e acadêmicos, a foi preciso afirmar a competência intelectual das mulheres. Pasmem.
Mas não só: a chegada da pílula anticoncepcional, em 1961, trouxe novas questões como direitos reprodutivos, planejamento familiar e a necessidade de uma legislação que protegesse os direitos das mães trabalhadoras. No fundo, Leila e as ativistas feministas tinham mais em comum do que sonha a nossa vã filosofia. Na entrevista ao "Pasquim", ela declara: "Eu resolvi ganhar meu dinheirinho, ter meu apartamento, ter o homem que eu quiser, pagar as minhas contas, eu trabalho. E gosto".
Virginia Woolf escreveu que as mulheres devem matar “o anjo do lar”, a voz interior que faz com que elas anulem suas personalides, desejos e vontades pelo bem do marido, do casamento e da família. De muitas formas, foi isso que Leila Diniz fez: liberou um grupo de mulheres para terem voz e desejo próprios — o que é muita coisa, sobretudo no contexto histórico em que viveu.
Mas o lugar de onde Leila fala não é para todas. A quarta (e atual) onda feminista nos ensina que é preciso pensar as diferenças de raça e de classe, como escreveu Angela Davis. As mulheres negras, muitas delas em situação econômica precária, formam a maioria da população brasileira. Vivendo em uma sociedade que nunca as colocou no papel de "anjo do lar", não é difícil entender que tenham outras prioridades como ficarem vivas no país em que são elas as principais vítimas do feminicídio e da violência sexual.
Diante disso, Leila Diniz segue revolucionária. Não é toda mulher que pode, mesmo em 2019, enfrentar o machismo de igual para igual ou mesmo desfrutar o sexo com liberdade. Frente às desigualdades que separam as mulheres brasileiras, ela vem lembrar a uma parcela de nós sobre o imenso privilégio que é ter um apartamento, um trabalho bem-remunerado, poder falar o que se pensa, dar para quem se quer e exibir a gravidez na praia de Ipanema.