Pois bem. Décadas atrás, quando se supunha que houvesse mais pudor e compostura, Lazarine não perdoava a indiferença sexual de Plínio, com quem se casara há um ano. Continuava virgem e ão tinha coragem de revelar aos pais nem a ninguém.
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Seu marido era um homem riquíssimo, conhecido como amante dos prazeres, mas suspeito de não gostar dos prazeres oferecidos pelas mulheres.
Para afastar essa fama, resolveu se casar com essa linda jovem, 20 anos, alta, elegante, olhos verdes e ruiva, um tipo físico que atraía qualquer homem.
Infelizmente, para decepção da jovem, seu marido não procurou cumprir a obrigação natural do matrimônio, nem na noite de núpcias. Seus gostos e sua inclinação o afastavam das mulheres. Dormia com a esposa o menos que podia, e assim mesmo como se fossem irmãos.
Era público e notório que seus gostos nada tinham a ver com o sexo feminino. Seu modo de agir decepcionou a jovem esposa, uma mulher normal, na flor da idade e com os hormônios fervendo.
Lazarine percebeu que o marido tinha aversão ao aconchego na cama, e repulsa ao seu corpo. Como era bem dotado e cheio de vigor, as suspeitas de que ele tivesse alguma perversão fora de casa, passaram a incomodá-la.
Sentindo-se rejeitada sexualmente, a primeira ideia que lhe acorreu, foi dar-lhe o troco, com indiferença total e talvez uma traição.
Com o tempo, as indiretas ao marido começaram a fluir da sua boca, com censuras, insultos e injúrias. Não houve jeito dele se tocar e procurar contornar a situação. Sua frieza era gritante e a mulher não suportava mais.
Sentindo-se sozinha e sem ânimo para se separar desse homem tão rico e respeitado, numa época em que a mulher era apenas um objeto de uso pessoal, Lazarine procurou fazer amizade e se aconselhar com uma beata conhecida na cidade, que, na realidade, era uma cafetina.
Estava disposta a se vingar do marido, procurando sentir os prazeres com que sonhava e dos quais ele a privava.
Tinha entrado no casamento com um bom dote e só o aceitou como esposo por pensar que ele fosse um homem normal, que gostasse do que os outros homens gostam e devem gostar. Se ela soubesse que ele tinha aversão ao sexo feminino, jamais com ele teria se casado. Preferia mil vezes ter continuado solteira..
Jamais o perdoaria por tê-la usado, para tapar a boca do povo. Se ela quisesse renunciar aos prazeres do mundo, teria ingressado num convento para ser freira. Mas já que não renunciou, não era justo estar sendo privada desses prazeres, enquanto o marido ficava na rua até altas horas da noite, fazendo só Deus sabia o que.
Ao conversar com a beata e contar o drama por que estava passando, ouviu da experiente mulher que não abrisse mão da sua mocidade, nem renunciasse aos prazeres do seu corpo e da sua vida, pois, quando a frescura de sua pele tiver cedido lugar às rugas da velhice, ela não encontrará mais nenhum homem que a queira. Como diz o antigo ditado: “Às moças, o bom-bocado; às velhas, o rebotalho.”
E a beata disse à jovem que iria lhe arranjar os amantes que ela escolhesse. Era só dizer os nomes, ou os tipos que ela quisesse e deixar o resto por conta dela. O único favor que pediu foi que Lazarine a ajudasse sempre, pois era uma pobre mulher necessitada.
Lazarine disse à beata o tipo e características de um rapaz que sempre passava por seu bairro e pelo qual ela tinha grande simpatia. Mandou que sondasse se ele era aproveitador de mulheres ou se era decente.
A mulher não tardou em levar o rapaz à sua presença. Alguns dias depois, arranjou-lhe o segundo, e mais tarde um terceiro, e ainda outros em seguida, de acordo com a fantasia da jovem dama, que, por instinto de vingança, queria sempre novas emoções para a sua “galeria do amor”. Apesar de tudo, não se cansava de tomar precauções, para evitar que o marido soubesse do seu novo gênero de vida, por maiores que fossem as culpas que ele tivesse para com ela.
Como era dotada de bom apetite, a jovem esposa multiplicava e prolongava tanto quanto podia as visitas dos galãs por ela escolhidos, um de cada vez, a fim de aproveitar o tempo, seguindo o bom conselho da beata alcoviteira.
Um dia em que seu marido fora convidado para cear em casa de um amigo, Lazarine aproveitou a oportunidade para induzir a beata a levar à sua presença um dos mais belos rapazes da cidade, um verdadeiro galã, sendo atendida prontamente. Ronaldo era o nome dele.
Só deu tempo mesmo da dama e o novo amante se sentarem à mesa para cear, Plínio, o marido, bateu à porta, inesperadamente, pedindo aos gritos que a abrissem. Ouvindo aquela voz, a quem não esperava antes de amanhecer o dia, Lazarine julgou-se perdida. Mesmo assim, achou-se no dever de ocultar o rapaz “visitante”, que tampouco imaginava o que seria feito dele.
Sem tempo para raciocinar, sua primeira ideia foi escondê-lo numa espécie de galeria, contígua à sala onde ceavam, e debaixo de um cesto de colocar galinhas, coberto com um saco de estopa. Nesse meio tempo, a criada, que era conivente com a patroa, guardou o que se encontrava sobre a mesa, e correu a abrir a porta ao patrão.
Lazarine, ao ver o marido chegar, mostrou-se surpresa por ele ter voltado tão cedo da casa do amigo. Plínio esclareceu que tinha havido um imprevisto e o jantar fora cancelado.
Não esquecendo do galã escondido debaixo do cesto das galinhas, Lazarine disse ao marido que ele devia ir deitar-se logo. Mas ele queria cear. A mulher mandou que a criada repusesse a mesa e servisse a ceia. Disse ao marido que, na verdade, não costumava se banquetear quando ele não estava.
Na manhã seguinte, os rendeiros de Plínio, logo cedo, lhe trouxeram os produtos de uma de suas fazendas e colocaram os burros, sem lhes dar de beber, numa pequena estribaria, ao lado da galeria onde o rapaz se encontrava escondido no cesto.
Aconteceu que um dos animais, impelido pela sede, libertou-se da corda e saiu da estribaria, farejando aqui e ali à procura de água. Correndo assim de um lado para o outro, passou junto do cesto sob o qual se achava o jovem amoroso, e pisou-lhe os dedos, que estavam um pouco para fora. O pobre diabo, por causa da forma do cesto, viu-se forçado a manter-se curvado sobre o ventre, e pousar as mãos em terra, para sustentar-se melhor. A dor que sentiu o fez soltar um grito de pavor. Plínio ouviu-o, e ficou muito espantado, compreendendo que aquele grito não poderia ter partido senão da sua casa. Saiu da sala, e como o rapaz escondido continuasse a lastimar-se, porque o burro conservava sempre as patas sobre os seus dedos, Plínio gritou, indagando quem ali estava, ao mesmo tempo em que se encaminhava diretamente para o cesto de galinhas.
Levantou-o e encontrou o “pássaro”, que tremia com todos os membros, de medo que o marido irado lhe fizesse passar um mau-bocado. Plínio, que o reconheceu por já lhe ter feito a corte durante longo tempo, mas inutilmente, limitou-se a perguntar-lhe o que viera fazer em sua casa. A única resposta que obteve foi a sua súplica de que não lhe fizesse nenhum mal.
Plínio mandou que o rapaz se levantasse e disse-lhe que nada temesse, mas sob a condição de lhe informar como e por que estava ali.
Enquanto Lazarine sentia-se triste e aflita, temendo que ali ocorresse uma tragédia, seu marido mostrava-se exultante, com a presença do seu “Adonis” em sua casa. Tomou o rapaz pela mão e o levou até ela, que se achava num estado de pavor e sobressalto indescritíveis.
Irônico e irado, Plínio perguntou a Lazarine como justificar aquela situação. Calada e trêmula, a mulher não olhou nos olhos do marido. Ele esbravejou que queria que o diabo levasse todas as mulheres para queimá-las no fogo do inferno, sem exceção, pois eram todas iguais e infiéis.
Ao ver que o marido apenas a estava maltratando com palavras, e calculando que ficaria quites com ele por muito menos do que acreditara, não duvidou de que ele estivesse muito satisfeito por ter em sua casa um rapaz tão bonito.
Esta ideia a reanimou e ela respondeu-lhe, sem parecer perturbada, que o fato dele ter desejado que o diabo levasse todas as mulheres para o inferno não a surpreendia, haja vista que era público e notório que ele detestava o sexo feminino. Porém, graças a Deus não seria assim, pois, afinal de contas, ele podia se queixar da infidelidade dela, mas havia uma gritante diferença entre ela e outras mulheres que se fingiam de santas, e mesmo tendo o amor e o respeito dos maridos, eram descaradamente infiéis. Disse-lhe que, no seu caso, ela não sabia o que era ser amada e desejada pelo marido. Com ele, só tinha conhecido a solidão do leito conjugal e a indiferença. Reconhecia que, em matéria de vestuários e ornamentos, nada lhe faltava. Entretanto, ao invés disso, preferia mil vezes receber dele amor e carinho, coisas que ele não lhe dava. Disse-lhe que é uma mulher normal, e na idade em que se encontrava tinha seus desejos e paixões. Como ele a desprezava, nada a impedia de procurar em outros braços o que ele não lhe dava. Finalmente, disse-lhe que suas escolhas eram seletivas, como o belo rapaz que ali se encontrava, fino e educado.
Plínio, já cansado de tanto “bla-bla-bla”, interrompeu a mulher, dizendo:
– Deixa, mulher, não falemos mais nisso. Hás de ficar contente comigo em relação a esta história. Sabes que sou um bom marido, e assim, nada mais de censuras, de parte a parte. Tudo quanto te peço é uma ceia, pois me parece que este gentil cavalheiro também está com fome. Em seguida, disporei as coisas, de maneira que não tenhas do que reclamar.
A boa dama ordenou, imediatamente, que pusessem de novo a toalha na mesa e servissem as iguarias que ela mandara preparar. E ceou, tranquilamente, com o infame cornudo e o belo mancebo.
O que se passou entre esses três personagens depois da refeição, não é difícil de imaginar. O cornudo, a esposa e o amante se entenderam muito bem.
No dia seguinte, os “novidadeiros” da praça espalharam aos quatro cantos da cidade, cada qual a sua versão. O difícil era dizer quem tinha aproveitado melhor a noite: o marido, a mulher ou o amante.
Diz a voz da sabedoria, que a quem nos prega uma peça, devemos pregar-lhe outra, ou como diz o ditado, “olho por olho, dente por dente.” Se não for possível no mesmo instante, não faltará ocasião.