Filha de um casal de portugueses, a atriz enfrentou a resistência dos pais diante da escolha pela profissão, aos 15 anos. Foi quando Laurinda de Jesus Cardoso se tornou Laura Cardoso. Era uma época em que as atrizes, assim como as prostitutas, para poderem circular à noite, eram obrigadas a portar uma carteirinha expedida pela polícia (“a principal dificuldade que enfrentei na profissão foi o preconceito, que não deveria existir contra nada nem ninguém”, diz).
Naquele tempo, ela nem imaginava que sua história profissional se cruzaria com a da dramaturgia nacional. A atriz também se consagrou no teatro e fez seu primeiro filme em 1962 (“O rei Pelé”). Mas é na telinha onde aparece praticamente anualmente, emendando um trabalho no outro. O mais recente foi em “A dona do pedaço”, em 2019, quando interpretou Matilde e teve que se afastar das gravações por conta de uma gripe. Mas dona Laura segue firme e forte:
— Parar? Nem pensar! Aposentadoria é um horror! — define a Veridiana de “Flor do Caribe”, cuja reprise está no ar na TV Globo.
Nesta entrevista, uma das maiores atrizes brasileiras de todos os tempos conta que morria de medo de errar na época da TV ao vivo.
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Sua trajetória profissional se confunde com a história da TV brasileira. Pode contar um pouco sobre as transformações pelas quais viu o veículo passar?
Foram muitas, tanto humanas, quanto técnicas. Eu já era contratada da Tupi quando a TV chegou ao Brasil. De repente, tínhamos que lidar com equipes maiores e gente nova, que sabia lidar com as câmeras, novos diretores mostrando as marcações e enquadramentos. Atores tinham que aprender a dividir o espaço do cenário e não mais só o microfone, como no rádio. No rádio, cada ouvinte imaginava o personagem a sua maneira. A TV trouxe a imagem associada àquelas vozes. Tínhamos que aprender uma nova linguagem, postura, a representar para as câmeras, não havia público.
Uma mudança enriquecedora?
Muito. A TV veio escura, bruta, sem a gente saber nada. Fomos descobrindo como interpretar, o que inventar, o que jogar fora. As emoções passaram a ser divididas entre voz e expressões faciais e corporais. Mudaram os gestos, o volume da voz... tudo guiado pelo diretor. Aos poucos, aprendemos as melhores técnicas para nos comunicar com o público, que agora nos assistia e não só ouvia. Aprendemos juntos: atores, técnicos, diretores. Muita gente do rádio não conseguiu seguir carreira na TV.
A TV era ao vivo. O que acontecia quando esquecia o texto? Chegou a usar cola?
Nunca usei. Sou “miopíssima”, tudo era decoradíssimo. A gente até gozava “olha, aquele ali usa dália (expressão inspirada em um ator que colou seu texto num vaso de dálias, parte do cenário)”. Quando esquecia, a gente inventava dentro do assunto. Já éramos espertos, vinhamos do rádio, do teatro, do circo. A dália servia aos inseguros. Quem não tinha medo de parar, dava um jeito. Nunca usei ponto eletrônico. Não confiava. Só confio na minha cabeça. Hoje, somos responsáveis, sim, mas, no começo da TV, havia um medo de errar muito grande. Então, estudávamos muito o personagem. Eram horas ensaiando e, quando íamos para frente das câmeras, estávamos prontos.
A troca de roupa era outro desafio, né?
A gente aproveitava quando a câmera se afastava. Às vezes, estávamos nos trocando com a ajuda da camareira, quando a câmera vinha se aproximando. Acontecia de estarmos terminando de vestir uma meia ou abotoando uma blusa, e a câmera já estar na gente. Dava um mal-estar, mas dávamos um jeito. Ficamos craque em fazer fazendo.
Você fez a transição da TV ao vivo para a gravada. Hoje está na TV HD. Como as mudanças afetaram seu trabalho?
Para o ator, não muda nada. A gente continua representando. Não me preocupo com a câmera, se ela está mais perto, mais longe. Ela faz o dela, eu faço o meu. Cada um faz seu serviço e sai essa coisa maravilhosa que é a televisão.
Volta e meia, ouvimos que a televisão vai acabar. Por conta da internet, do streaming... Mas ela segue mais viva do que nunca. Por quê?
Porque tem a capacidade eterna de se reinventar. Também diziam que o teatro e o cinema iam acabar por causa da TV. Acaba nada! Vai se fazer de outro jeito, com outra gente. Arte não morre.
O que significa ser uma das atrizes que mais fez novelas na história da televisão brasileira?
Que tive sorte e que autores confiaram em mim. Gosto e sempre respeitei a televisão. É uma coisa sagrada para mim. O trabalho é sagrado para mim. Amo meus colegas, meu ambiente. Fui muito feliz durante minha carreira.
Pensa em aposentadoria?
Parar? Nunca! Você se aposenta e aí para tudo. Aposentadoria é um horror. Estar na ativa mantém a gente viva.
No ano passado, teve que se afastar das gravações de “A dona do pedaço” por causa de uma gripe. Como está agora?
Tudo bem, sou forte. A gente tropeça, mas levanta e anda.
Em “O outro lado do paraíso” (2018), contracenou com Fernanda Montenegro e Lima Duarte. Como é a troca entre atores que estão há quase 80 anos na profissão?
Foi muito bom. O Lima é meu parceiro na TV desde que ela começou. É sempre incrível ver Fernanda interpretando. Foi um encontro de colegas antigos, que começaram com muita dificuldade. A gente fica triste de saber que um Fernando Baleroni (pai das duas filhas da atriz, Fátima e Fernanda, e de quem ela é viúva) foi embora, um Davi Neto, um Cassiano Gabus Mendes... Começamos meninos, com 16, 17 anos. Fomos nós que inventamos os erros e os acertos.
Está no ar em “Flor do Caribe”. O que sente ao se assistir?
Gosto, mas vejo com olhar crítico. Onde errei, acertei, onde podia ter feito de outro jeito... A gente fica nervosa, preocupada com texto, gesto. Se vendo e revendo, enxerga onde pode melhorar.
Como será o seu aniversário?
Nem ligo muito para esse negócio. Deus é quem vai dizendo “anda”. E vamos andando. É bom. Ele nos dá a oportunidade de viver e ver as pessoas que amamos. Minhas Adriana e Claudia (netas), meu amado Fernando (bisneto), que é meu último amor. Digo: “olha que bom, cheguei a ter bisneto!”.