LARISSA OLIVEIRA, HEROÍNA DO BRASIL
Raimundo Floriano
Quebrando tabus: mulher e nordestina
Tem três programas na TV aos quais eu adoooooro assistir. Não os perco de jeito e maneira: A Praça É Nossa e Roda a Roda, ambos do SBT, e Soletrando, do Caldeirão do Huck, na Globo.
A Praça, porque ainda preserva o humorismo escrachado da época dos circos sem cobertura de lona, em que cada ator é um palhaço, fazendo-me lembrar minha atuação circense como “escada” – comediante que prepara a piada para o palhaço, sempre levando a pior ao fim e ao cabo –, no Circo Cometa do Norte, lá em Teresina-PI. Roda a Roda, porque me divirto a valer com os vacilos culturais do Silvio Santos, seu apresentador. Soletrando, porque aprendo muito em cada edição, ainda mais nessa última, a Terceira, quando foram explorados todos os aspectos das Novas Regras Ortográficas da Língua Portuguesa. Lamentavelmente, no dia 27 de junho de 2009, sábado, ocorreu sua finalíssima, e não se sabe quando outro se iniciará. É sobre ele que lhes quero falar.
Desde o início, passei a observar a menina recifense Larissa Oliveira, que respondia a todas as perguntas com um largo sorriso, sem jamais se afobar ou demonstrar surpresa. Meu sangue mameluco-pernambucano-maranhense fez com que eu passasse a torcer por aquela moreninha.
Nas cabines, três heróis brasileiros. Não aquele tipo de “heróis” do Big Brother Brasil, como o apresentador do programa os rotulou, mas heróis de verdade que, superando todos os percalços, a falta de recurso, estudando em escolas públicas, ultrapassaram as etapas estaduais, venceram mais 24 concorrentes nas semifinais, e ali estavam, ajudados apenas pelos esforços no estudo e pela queimação de pestana na consulta a dicionários. Para os “heróis”– derivação de “herotismo”? – do BBB, a disputa de um milhão de reais. Para os heróis do Talento e do Estudo, um premiozinho de cem mil.
Eram eles, pela ordem das cabines: Bruno Roberto, 15 anos, do Rio de Janeiro, Pedro Henrique, 14 anos, do Ceará, e Larissa Oliveira, 15 anos, de Pernambuco.
Todas as palavras propostas, enviadas por internautas de várias cidades, foram sorteadas no computador. Não houve proteção para qualquer dos concorrentes. Cada participante poderia perguntar o significado da palavra, sua aplicação na frase, essa parte a cargo do Professor Sérgio Nogueira e da cantora Sandy, que assessoravam o programa, e pedir ao apresentador que a repetisse, antes de dar sua resposta.
Começa a batalha! Pauleira para todo lado! E a meninada firme, confiante, tirando de letra! Os obstáculos foram-se sucedendo: intransitável, nigérrimo, compreensível, abdução, desasado, energizar, neofascismo, explícito, hemiplegia, imensurável, excreção, extrato, hipersensível, megaevolução, inenarrável, celagem. E a turminha estraçalhando.
No final da 6ª Rodada, a garota Larissa me extasiou, ao dar a grafia correta da palavra aportuguesada JIU-JÍTSU, demonstrando estar consciente, não só do emprego do hífen, como da regra para a acentuação das paroxítonas.
Em qualquer jogo, todavia, para que haja um ganhador, é inevitável que alguém saia. E a primeira eliminação veio na 7ª Rodada, recaindo sobre os ombros de Bruno Roberto. Ao ser-lhe dada a palavra ESPAIRECER, ele bobeou, atrapalhou-se e soletrou ESPAERECER! Consternação geral, choro do menino, da professora, da mãe e de toda a sua torcida que se concentrava no Rio de Janeiro. Mas ainda havia uma esperança: se os outros dois também errassem, ele continuaria na disputa.
Para sua desdita, isso não ocorreu. Pedro Henrique não titubeou ao soletrar HANTAVÍRUS. Coube à pernambuquinha soletrar EPIZEUXE! Barra pesada, meus amigos, principalmente para aquela faixa etária. Significa a figura pela qual se repete seguidamente a mesma palavra para amplificar, para exprimir compaixão ou para exortar. Larissa acertou em cheio!
Pronto! Bruno Roberto estava fora! Restavam apenas o dois, Pedro Henrique e Larissa Oliveira, que iriam agora debater cara a cara, no gogó, na competência!
Verdadeira batalha verbal e auditiva, tendo em vista a fanhosa dicção de Luciano Huck.
Corte para o Ceará. A torcida de Pedro Henrique vibrava, ria, pulava, rezava. Corte para Pernambuco. A torcida de Larissa Oliveira rezava, pulava, ria. Um capitão do Exército, seu professor no Colégio Militar, arriscou este vaticínio:
– Depois daquele jiu-jítsu, vai ser difícil qualquer palavra derrubar a Larissa!
Até a Edição de 2009, nenhuma mulher vencera a competição! Nenhum nordestino fora campeão! O Nordeste, portanto, já era o laureado. Ceará e Pernambuco decidiriam a Copa do Saber! Coube a Pedro o pontapé inicial:
Pedro Henrique - EXTRÍNSECO - Nenhum mistério para ele.
Larissa Oliveira - HACHURADO - Outra palavrinha invulgar. É o raiado que, em desenho ou gravura, produz efeito de sombra ou meio-tom. Larissa despachou!
Pedro Henrique - RERRATIFICAÇÃO - Nessa daí o menino demonstrou pleno conhecimento da Reforma Ortográfica. Antes, a palavra era escrita assim: re-ratificação. Hoje, suprime-se o hífen e dobra-se o R.
Larissa Oliveira - GILVAZ - Mais uma pedreira para a menina! Significa golpe ou cicatriz no rosto. Gol de Larissa!
Pedro Henrique - BUFÊ - Uma boa colher de chá para o garoto.
Larissa Oliveira - HIALOGRÁFICO - Na pronúncia dessa, o Huck se atrapalhou, aliás, ele tem essa dificuldade nas proparoxítonas. Refere-se à Hialografia, arte de gravar sobre vidro. Mais um gol de Larissa!
Pedro Henrique - PEDINCHICE - Que paulada no Pedro Henrique! É o ato de pedinchar, pedir com impertinência ou lamúria. Pedro Henrique amaciou no peito e mandou brasa!
Larissa Oliveira - NÊUTRON - Essa foi mole para Larissa!
Pedro Henrique - HANSENÍASE - Moleza também para ele!
Larissa Oliveira - XERIFE - Pô, só dá moleza agora?
Pedro Henrique - SELEIRO - Nessa daqui, o garoto poderia se atrapalhar. Dada a definição, fabricante ou vendedor de selas, ele acertou na mosca. Mas poderia ter errado, caso houvesse se afobado e entendido celeiro, que é depósito de provisões
Larissa Oliveira - ABSCISSA - Para a menina, iniciada no estudo da Matemática, essa não apresentou dificuldade.
Na 15ª Rodada, o desenlace!
Caiu para Pedro Henrique o vocábulo PALIMPSESTO - Aprendi essa palavra quando li Os Sertões, de Euclides da Cunha. Não é corriqueira. Significa antigo material de escrita, principalmente pergaminho. Era natural que o garoto a desconhecesse. Mesmo assim, ele arriscou: PALIMPCESTO!
Consternação geral! Tristeza na plateia, nas faces da mãe e da professora. Água fria na torcida lá no Ceará. Mas nem tudo estava perdido! Se Larissa também errasse, Pedro retornaria para o torneio.
Coube para Larissa Oliveira soletrar um vocábulo bem invulgar ESPECTRÓGRAFO - É o instrumento destinado a separar os componentes de uma radiação policromática e registrá-los em uma chapa fotográfica. Luciano Huck teve dificuldade para pronunciá-la – proparoxítona novamente. Socorrido pelos assessores, só na terceira tentativa a palavra saiu em sua fanhosa voz: ESPECTRÓGRAFO!
Tempo decorrido até aquele momento: 30 minutos! 30 longos minutos de nervosismo e tensão, pelo menos para mim. Não para a menina!
Larissa tinha do seu lado, a seu favor, aquele sorriso deslumbrante, seguro, que a caracterizou desde o início. Deu a resposta certa e, sorridente, esperou a apoteose!
Quebrara-se o tabu! Nordestina e do sexo feminino, Larissa arrebatara o prêmio máximo de cem mil reais! E, ao receber o cheque simbólico, praticou um gesto de solidariedade típico do nordestino amigo e irmão: doou a cada um dos seus concorrentes, Bruno e Pedro, a quantia de cinco mil reais.
Isso nestes nossos tempos em que o mais praticado é a doutrina do venha-a-nós!
A Globo não pega em tudo quanto é biboca do Exterior? Pois então?
Foi Pernambuco falando para o Mundo!