SÃO PAULO — Engana-se quem pensa que na cabeça de Katy Perry só circulam aqueles arco-íris, borboletas coloridas, tubarões dançarinos, cascatas de chocolate e pirulitos ambulantes. Sim, foi esse idealismo colorido que nos acostumamos a ver em clipes como “Firework”, “California gurls” e “Hot n cold”, marcos da ascensão dessa cantora pop nascida em Santa Barbara, Califórnia, há 35 anos, e que lança nesta sexta-feira “Smile”, seu sexto álbum de estúdio. Até ela se enganou nesse sentido. Por anos, Katy driblava instintos depressivos escrevendo hinos pop que marcaram uma geração. Se um namoro chegava ao fim, a resposta vinha numa música que liderava as paradas americanas.
A crise
Até que, em 2017, isso parou de funcionar. Ela terminou seu relacionamento com o ator Orlando Bloom, astro da franquia “Piratas do Caribe”, e seu disco “Witness” não atendeu às expectativas comerciais e, muito menos, de crítica — o site “Pitchfork” deu uma nota 4,8 (sendo o máximo 10). “O mundo não queria mais me ouvir naquele momento”, lembrou Katy, numa entrevista ao radialista Zane Lowe, da Beats 1 (Apple Music), na semana passada. “Era como se as pessoas falassem: ‘Agora, chega. Muito obrigado. Você já nos deu algo, e estamos satisfeitos’. E eu não consegui sair da cama por semanas, fui diagnosticada com depressão, precisei tomar remédios pela primeira vez na minha vida. Eu tinha muita vergonha. Eu pensava: ‘Sou Katy Perry, eu escrevi ‘Firework’, e agora estou tomando remédio. Isso é fodido”.
Palhaço triste
A sessão de fotos vestida de palhaço triste, que gerou a capa do álbum e a imagem que ilustra esta matéria, busca exatamente passar essa sátira melancólica entre o que se espera da artista Katy Perry e como ela pode estar por dentro.
O fato é que o álbum nasceu desse período, mas chega ao mundo em uma fase completamente diferente. E nem estamos falando da pandemia aqui. Katy Perry e Orlando Bloom reataram e noivaram em fevereiro de 2019 — o relacionamento é retratado na música “Champagne problems” (“eu quero te ver assim que limpar a crosta dos meus olhos. Até o dia que eu morrer você poderia ser o amor da minha vida?”, pergunta ela no início da canção). Agora, Katy está grávida de 35 semanas de uma menina, sua primeira filha, cujo nome ainda não foi revelado. A ela, Katy dedica a faixa de encerramento do disco, “What makes a woman”, uma balada que começa suave centrada no violão — que remete a “The climb”, sucesso de Miley Cyrus — em que canta versos assumidamente feministas como “O que faz uma mulher para mim/ É a forma como corto o cabelo e não coloco maquiagem/ Eu me sinto mais bonita fazendo a merda que quiser/ É que minha intuição nunca está realmente errada”.
A fase mais difícil passou, as prioridades são outras, mas “Smile” nasce com duas palavras-chave: resiliência (que batiza a faixa autoajuda “Resilient”) e gratidão. “Verdade seja dita, foi difícil, por vezes, encontrar esse sorriso com que batizo o disco”, admitiu a cantora no texto de agradecimento do álbum. “Sei que o mundo inteiro está sentindo esse peso também. Mesmo agora, preciso lembrar das incertezas que o futuro traz para mim, minha família, meu bebê... Mas esse disco é um pequeno retrato no qual eu posso sempre apertar play e lembrar que já sobrevivi a muitas noites escuras, períodos difíceis, e posso superar”.
E como é o disco, afinal?
Esclarecido o contexto pessoal que o cerca, é importante pontuar ainda que “Smile” deve ser visto como um marco definidor na trajetória artística de Katy Perry. Após o fracasso de “Witness”, é o seu resultado comercial que vai definir se a cantora americana seguirá relevante no universo pop contemporâneo ou passará a viver da chamada “newstalgia”, uma saudade de um passado não tão distante. O desafio é ainda maior quando não é possível fazer turnês, seja por conta da pandemia ou pela licença-maternidade que se aproxima.
É seguro dizer, no entanto, que Katy fez o que estava ao seu alcance. Reforçou sua presença on-line com diversas lives, conversando e estreitando sua relação com os KatyCats, como são conhecidos seus admiradores, e gravou shows virtuais para festivais como o Tomorrowland, voltado à música eletrônica.
Ela e 34 compositores
E, ao escrever as 12 faixas ao lado de 34 compositores e mais uma penca de produtores — com destaque para o sueco Johan Carlsson e o americano Andrew Goldstei —, entregou um disco de sonoridade plural, passando pelo electropop (em “Never really over” e “Cry about it later”), o pop com influência caribenha (de “Harleys in Hawaii”) e até o trap em “Not the end of the world”. Há altos e baixos, mas Katy Perry mais acerta do que erra, principalmente por focar no que sabe fazer de melhor. O grande trunfo é que ela está cantando mais do que nunca, e a produção ressalta isso em faixas como a balada “Daisies” (que faz lembrar seus grandes momentos como “Firework”), “What makes a woman” e também “Teary eyes” — esta embalada por uma batida disco retrô que remete ao europop.
Uma coleção de músicas pop que não necessariamente — raramente, na verdade — conversam entre si do ponto de vista temático ou sonoro. Mas, através delas, Katy Perry tenta levar, como a própria lista, “luz, esperança, felicidade, força, diversão, fantasia e amor para cada uma das suas células”.