RIO - Durante 37 dias do ano de 1865, Jovita Alves Feitosa viveu a glória. A jovem sertaneja de origem humilde virou celebridade ao se alistar como voluntária nas tropas brasileiras na Guerra do Paraguai. Com apenas 17 anos, conheceu autoridades, foi ovacionada em teatros, ganhou poemas e canções, mas logo saiu dos holofotes: foi impedida de lutar. Esquecida após sua sua morte, a “Joana D’ Arc brasileira” voltou à tona como ícone feminista, ingressando no “Livro dos heróis e das heroínas da pátria” em 2018.
Lacunas e mistérios em torno da personagem, porém, persistem. Ao mesmo tempo exaltada e ignorada, cercada de contradições, trata-se de uma mulher “polissêmica”, segundo o experiente historiador José Murilo de Carvalho , autor do recém-lançado “Jovita Alves Feitosa: Voluntária da pátria, voluntária da morte”. Espécie de esboço biográfico, o livro empreende uma tarefa nada fácil: compor o perfil de uma figura histórica que não deixou escritos e de quem há apenas três registros confiáveis de declarações.
Ao reproduzir entrevistas, poemas e registros da época, o imortal da Academia Brasileira de Letras coloca o leitor em contato direto com os documentos. Tenta separar os fatos dos mitos e mostra, nas poucas pistas encontradas pelo caminho, como a percepção em torno da heroína foi mudando ao longo dos anos.
“A escassez de documentação foi um problema. Mas creio que o núcleo da história se sustenta e cumpre a função de delimitar os contornos entre realidade e ficção. Construção de heróis e heroínas, ressignificações, são também matéria para o historiador”
Nascida em 1848, no interior do Ceará, Jovita era uma adolescente quando o Exército do Brasil iniciou um movimento para aumentar seus combatentes na Guerra do Paraguai. A convocação gerou um entusiasmo patriótico, que chegou até o Piauí, onde a jovem de 17 anos residia com seu tio. Ao saber das devastações sofridas pelos brasileiros no front, ela cortou os cabelos com uma faca, vestiu-se com roupas masculinas, alistou-se para a guerra... e foi aceita. Como homem.
Não demorou muito para que o disfarce fosse descoberto e, ela, levada à polícia — o alistamento de mulheres era proibido. No interrogatório, reproduzido na íntegra por Carvalho, ela alega, aos prantos, que se voluntariou para “matar paraguaios”. Queria vingar as mulheres brasileiras abusadas pelos combatentes inimigos. Apesar do choro, suas respostas foram firmes. Recusava-se a prestar outros serviços então considerados mais “adequados” às mulheres, como enfermagem. E garantiu, segura de si, que aprenderia a atirar.
‘Musa da guerra’
Há casos de mulheres que chegaram a combater no Paraguai graças à tolerância de alguns comandantes. Foi o que quase ocorreu com Jovita. Pressionados a produzir recrutas e voluntários, os presidentes das províncias perceberam que a jovem sertaneja podia virar exemplo e atrair combatentes.
Embarcando com o corpo de voluntários numa jornada que foi de São Luís do Maranhão ao Rio, Jovita atraiu admiração por onde passou. Descrita na imprensa como “musa da guerra”, “delírio das plateias” e “hóspede abrigada em todos os palácios”, foi recebida pelo presidente da Bahia e homenageada em teatros do Tocantins e do Rio. Embora fosse presença recorrente nos jornais, não deu entrevistas nesse período. Por isso, só se pode especular sobre o seu sentimento em relação à fama.
“A aceitação como voluntária certamente lhe causou alegria. As festas devem ter sido fonte de constrangimento. Semialfabetizada, sem saber usar talheres, de dentes limados, não podia sentir-se bem em palácios e teatros. Daí talvez seu mutismo.”
Para piorar, seu alistamento estava longe de ser unanimidade. Alguns jornais criticaram sua exaltação e espalharam mentiras, como a de que teria se voluntariado para acompanhar um amante.
— A maior parte da oposição tinha a ver com conservadorismo: guerra não era coisa para mulher — observa Carvalho.
Afinal, apenas 37 dias depois de embarcar com os voluntários, Jovita acabou rejeitada pelo exército. Desorientada, a “Joana D’ Arc brasileira” regressou ao Piauí e, com os presentes que ganhou durante os dias de fama, embarcou para o Rio. Sua vida a partir daí é cheia de pontos cegos. Longe do noticiário, sabe-se apenas que viveu como prostituta por um tempo. Em 1867, com apenas 19 anos, matou-se com uma faca, provavelmente por causa de um amor frustrado.
Personagem recuperada
Sua figura só voltou a ser recuperada na metade do século XX, quando foi tema de um livro de ficção. Embora muitos já a tivessem enquadrado na tradição milenar da mulher guerreira, só recentemente ela passou a ser revisitada dentro de uma perspectiva de gênero.
— Sua apropriação pelo feminismo começou em 2000, quando apareceu no “Dicionário mulheres do Brasil” (Zahar) — lembra Carvalho. — Sua luta pela emancipação da mulher também justifica sua inclusão no “Livro dos heróis e das heroínas da pátria”, proposta em 2012 e efetivada em 2018.
Mas é impossível colocar Jovita em uma caixinha. Em 1865, num artigo reproduzido no livro, um jornalista anônimo já percebia a complexidade da sertaneja. “Mas quem é Jovita? Palavra de honra que não sei quem”, escreveu. “Dizem que é uma moça, mas uma moça que é um homem; dizem que é um sargento, mas um sargento disfarçado (....). A Jovita, pensam também alguns, é uma feiticeira”.
“Memórias muitas vezes se constroem com releituras de figuras históricas. A de Tiradentes foi reforçada com sua representação como Cristo. Não me surpreenderia se Jovita fosse apropriada também pelo movimento negro.”