(08.06.1928 – 15.07.2014)
Raimundo Floriano
(Publicado em 08.06.17)
José Albuquerque e Silva, o Carioquinha das Meninas, meu irmão, nasceu em Balsas (MA), no dia 8 de junho de 1928. Filho de Emigdio Rosa e Silva, o Rosa Ribeiro, e Maria de Albuquerque e Silva, a Maria Bezerra, era o quarto de uma prole de dez, da qual sou o sétimo. Coincidentemente, seu aniversário caía no dia de outro irmão, o Afonso, nascido em 1933. Esta é a foto mais antiga que temos dele, em 1928, no colo do velho Rosa:
Rosa Ribeiro, Maria Bezerra,
José, Pedro, Maria Isaura e Maria Alice
Sempre que lhe perguntavam por que a alcunha de Zé Carioca, se nascido no sertão maranhense, ele dizia que fizera um curso de carioca por correspondência. Mas a explicação é bem outra. No ano de 1942, o americano Walt Disney, dentro da Política de Boa Vizinhança, criou o personagem Zé Carioca, no filme Alô, Amigos, que se encaixou como uma luva no José, dono de olhos meio esverdeados e, naquele tempo, já fazendo suas papagaiadas, como enfiar a cabeça numa lata de querosene vazia, para ampliar a voz ao cantar. Assim, Zé Carioca passou ele a se chamar.
Neste flagrante, vemos nossa família em 1938, com José aos 10 anos, e eu de cabelos cacheados:
Maria Alice, Maria Isaura, Magnólia, prima, e Pedro; Bergonsil, Afonso,
Maria Bezerra, Maria Iris, Rosa Ribeiro, Raimundo Floriano e José
José fez o Curso Primário em Balsas, após o que, como todos os que queriam conquistar o futuro, embarcou numa balsa rumo ao saber, primeiramente em Floriano, depois em Teresina. Era de Balsas para Mundo.
Concluído o Ginásio, conseguiu emprego na Companhia de Fiação e Tecidos União Caxiense S/A. Trabalhava durante o dia e, à noite, preparava-se para o dificílimo concurso para o Banco do Brasil, o melhor emprego do país na época. Aprovado, foi admitido nos quadros do Banco no início de 1948, tomando posse em Teresina.
Sendo o que maior remuneração recebia em toda a família, transformou-se, desde então, em fonte segura na ajuda aos que a ele recorriam, parentes ou amigos.
Na data de hoje, 5 de setembro, quando elaboro este perfil, comemora-se o Dia do Irmão. Nada mais apropriado, pois, para que eu lhe renda um preito de gratidão pelo que representou em minha vida, não só nestes últimos 54 anos aqui em Brasília, em que nos apoiamos e socorremos mutuamente, mas também por dois benefícios marcantes com que me agraciou, decisivos para meu sucesso profissional, pelos quais constantemente lhe agradecia e deixo aqui patenteados: o primeiro, ao custear meus estudos, no Ginásio e no Científico, inclusive em colégio interno; o segundo, ao cortar por completo qualquer ajuda financeira, quando percebeu que eu não queria nada com a dureza.
José trabalhou em Teresina até 1951 quando, desejando residir à beira-mar e também procurando integrar-se ao meio artístico nordestino predominante no eixo Paraíba-Pernambuco, pediu transferência para João Pessoa.
Na Capital Paraibana e no Recife, cidades-gêmeas, conviveu com grandes estrelas nordestinas como Nélson Ferreira, Capiba, Claudionor Germano, Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga, Patativa do Assaré, Severino Araújo, Marinês e outros, bem como com os que vinham de fora, em temporadas artísticas. Nos flagrantes abaixo, vemo-lo, todo enfatiotado, em companhia de Carmélia Alves, Abel Ferreira, Ary Barroso e pessoal da Orquestra Tabajara:
Dono de potente e educada voz, José tocava gaita de boca e violão, o que o deixava à vontade na convivência com o pessoal envolvido no meio artístico:
Também era muito enfronhado no esporte, especialmente no futebol, atuando como goleiro em times da AABB:
Com todos os pré-requisitos – jovem, solteiro, desportista, músico, alto salário –, José era excelente partido para as moças casadoiras de então, aprovado por 10 entre 10 pais de família da região. Por isso, teve muitas namoradas, namoro inocente, como do costume, de apenas pegar na mão, dançar colado, e pronto. Beijo? Só depois de casar. Algumas de suas namoradas, que mudaram sua alcunha apenas para Carioquinha, deixaram-lhe estas lembranças:
Embora grande romântico, namorador, seresteiro e paquerador, Carioquinha vangloriava-se como vacinado contra o casamento, chegando a compor marcinhas carnavalescas nas quais proclamava que jamais cairia no laço.
Em 1960, com dois de nossos irmãos já morando em Brasília – Afonso, desde 1957, e Maria Isaura, desde 1958 –, Carioquinha transferiu-se para cá, logo após a inauguração, tendo eu chegado em dezembro daquele ano. Em 1961, veio a Maria dos Mares que, nos Anos 1970, se mudou para o Estado da Paraíba, onde mora até hoje.
Foi um período em que a vida noturna de Brasília, para os rapazes solteiros, era intensa nos arredores, com muitas boates lotadas de meninas cortesãs, que preenchiam a vidas dos mancebos solitários da Capital Federal. Por ser frequentador assíduo daquela dolce-vita, José passou a ser conhecido como o Carioquinha das Meninas, pseudônimo que adotou para sempre. Por ficarem os principais cabarés na região denominada por Sete Quedas, nos arredores de Luziânia, ficou também conhecido como Embaixador Sete Quedas.
José foi o primeiro em nossa família a possuir automóvel zerado, um DKW-Vemag Belcar, sedã, verde-escuro, capota creme, que passou a servir de transporte de luxo para todos nós.
Seu currículo escolar estendeu-se até a conclusão do Ginásio. Desde então, passou a instruir-se como autodidata, adquirindo saber enciclopédico, notadamente no campo da Biologia, Filosofia, Esoterismo, Fisioterapia, Literatura, Ciências Sociais, Astrologia, Astronomia e Espiritualismo. Versado em Inglês, Espanhol, Latim e Francês, era bamba na Língua Portuguesa e atualizadíssimo com o Novo Acordo Ortográfico, sendo um dos revisores de dois de meus livros, o primeiro, Do Jumento ao Parlamento, e o último, Memorial Balsense, já na gráfica.
Ele foi nosso guru, nosso doutor, nosso consultor, e nos orientava em qualquer tipo de problema, mormente os de saúde, às vezes até prescrevendo o medicamento correto.
Além de mestre no cordel sarcástico, era humorista e dotado de incrível capacidade de construir frases de efeito. É dele esta, quando avaliava o comportamento de certa dama: “É direita, só entorta quando se deita”. Sabia desmontar, no ato, argumentos que lhe pareciam descabidos. Como no lance que passo a lhes contar.
No comecinho de Brasília, quando acontecia uma batida de carro – não falo em acidente, mas simples encostada –, acorriam ao local a televisão, os jornais, a perícia, o escambau. Uma dessas aconteceu com um sobrinho nosso adolescente, amassada besta, hoje resolvida pelos “martelinhos” de qualquer oficina, tendo ocasionado a presença de grande parte de nossa família e de toda a mídia brasiliense. Um coroa baixinho, ao ver nosso sobrinho com cara de criança, foi logo condenando: – É nisso que dá um menino desses dirigindo na rua!
Ao ouvi-lo, o José rebateu: – Você está enganado! Menino, não! Ele é maior de idade e tem Carteira de Motorista!
Não contente, o coroa retrucou: – Ainda bem que isso aconteceu, porque eu estava mesmo sem assunto para publicar amanhã em meu jornal.
Aí, funcionou a ferina verve do Carioquinha das Meninas. Encarando o jornalista coroa, falou-lhe: – Pois quando você estiver sem assunto, reúna um bando de garotos, leve-os para o cerrado, dê para todos eles e, no dia seguinte, publique esta manchete: VELHO SAFADO DANDO O C* NO MEIO DO MATO!
Durante muito tempo, manteve-se por aqui o reinado do Carioquinha das Meninas, solteirão cobiçado, autovacinado contra a instituição matrimonial.
Mas um dia ele mesmo decretou o fim dessa vida de folgazão, ao apaixonar-se por uma colega de trabalho do Banco, a bela carioca Lúcia Maria Garcia Frias, com quem se casou no dia 26 de setembro de 1970, na Igrejinha de Nossa Senhora de Fátima. O casal teve três filhos: Lara Maria, Ima Aurora e Alden Garcia.
José e Lúcia
Esse casamento durou até o início da Década de 1980, quando lhe adveio o divórcio, voltando o José a ser novamente o Carioquinha das Meninas e solteiro juramentado.
Sua atenção voltou-se totalmente para a Música, a Poesia, as Artes Manuais, o Espiritualismo e a Beneficência. Sem grandes ambições, gostava de proclamar que, enquanto pudesse andar com um carro velho pelas ruas e comer carne todos os dias, o Mundo estaria bom para ele.
Montou em sua garagem uma oficina profissional de serralheria – em que se especializou – e de conserto de bicicleta, atendendo a quem o procurasse, com um detalhe: nada cobrava! Não há morador nas redondezas de sua quadra, a 714 Sul, hoje na idade dos 30, que não teve uma bicicleta arrumada por ele.
Apaixonava-se facilmente, o que lhe inspirava montões de poemas, porém a “vacina” não deixava os romances prosperarem.
Formou, com amigos violonistas, trupes que se apresentavam nas noites candangas, notadamente em festas beneficentes, Embaixadas e domingueiras na AABB, dentre eles o Alencar Sete Cordas, o Alberto Vasconcelos e o Expedito Dantas, seu parceiro mais constante.
Carioquinha, Expedito e Alencar – Expedito, Carioquinha, Alberto e Raimundo Moura
Em meados da Década de 1990, o Carioquinha das Meninas, solteirão inveterado, quase depôs as armas ao inebriar-se por mimosa goiana, com quem vivenciou paixão adulta e avassaladora, que, embora efêmera, lhe rendeu alentada produção de românticas poesias. Ei-lo com sua Musa Inspiradora, Sonhado Sonho, no Réveillon 1994/1995:
Ao completar 80 anos, gravou, em dupla com o Expedito, este CD:
Capa do CD – Expedito e Carioquinha no Estúdio
Desde 1960, quando nos reunimos em Brasília, José sempre foi para mim mais que um irmão, ajudando-me nas dificuldades, orientando-me nas atribulações, participando de todos os momentos, tristes ou, a mais das vezes, alegres de minha vida: meu primeiro filho tem seu nome, sou padrinho de sua primeira filha, e minha caçula é sua afilhada.
José, talvez incorporando o Zé Carioca americano, sempre gostou de exibir-se e de fazer suas mungangas, como adiante se vê:
De uns poucos anos para cá, ele andava um tanto depressivo, cabisbaixo, silente, preocupando a todos nós, parentes e amigos, que não lhe compreendíamos esse comportamento. Na certa, ele, lá nos esconsos de seu coração, percebia, sem contar para ninguém, que the end was near, como fala a canção My Way, uma de suas preferidas.
No dia 15 de julho, ele partiu. Na véspera, deitou-se para dormir, na hora costumeira, e amanheceu sem vida. Saiu do palco do jeito que sempre pediu em seus trabalhos espiritualistas e, além disso, fazendo piada: a todos os amigos que comunico seu falecimento, tenho que escutar esta, em tom amenizador de nossa tristeza: – Quando acordou, tava morto!
Dos cinco irmãos que éramos aqui em Brasília, agora só resta apenas eu para contar a história de todos nós. É a vida nos levando, como diz o samba do Zeca Pagodinho. Em sua Missa do Sétimo Dia, a Missa da Redenção, escolhi esta foto, bem representativa do que ele foi, para distribuir com os que à solenidade compareceram:
Como lembrança auditiva de seu trabalho, escolhi estas três faixas, extraídas do CD que nos deixou, ao tornar-se octogenário:
Piscina, guarânia de Chrystian e Ralf:
A Media Luz, tango de Carlos Cesar Lenzi e Edgardo Donato:
Índia, guarânia de M. Ortiz Guerrero, J. Assunción Flores e José Fortuna: