23 de maio de 2020 | 05h00
Como estão as coisas e como você tem passado por esse período de resguardo? Está na sua casa no Rio?
Como está sua relação com a criação neste momento de quarentena? Você está produzindo?
Eu sempre produzi muito. Os fatos, para sempre e em todos os instantes, mesmo lá atrás, são muito fortes, são muito importantes. Eu sempre tive um pensamento fundamentado na história. Tudo é história. Tanto as estórias como a História, mas é tudo uma história só. Tudo que é da história me abala. Toda semana, com a ajuda do João Paulo pelo telefone, tenho publicado novos inéditos poemas em meu Instagram.
Pensa em fazer uma live?
Olha, fazer lives não se coordena com a minha situação atual. Mas eu recomendo que consultem o meu portal Panfletos da Nova Era, que é uma obra-prima feita pelo João Paulo e pela Maria Borba. Lá estão infinitos shows gravados, entrevistas que eu dei, recomendações de leitura. É interessantíssimo.
Os shows estão parados neste momento. As plataformas digitais revolucionaram o consumo de música e as lives são um caminho para que cantores e compositores apareçam para o público, mas o dinheiro para os profissionais das artes em geral está escasso. Como resolver essa questão?
Eu recebo direitos autorais e tenho a minha filha Amora Mautner (diretora da TV Globo) que me financia o apartamento onde eu moro, a comida que eu como. É isso. Infelizmente, minha situação é um privilégio para poucos. Penso que nesse momento extraordinário deveriam haver subsídios públicos urgentes para quem está precisando. A arte é fundamental para a vida do ser humano. O Brasil se fez com os cantos e os atabaques dos negros trazidos como escravos. Getúlio Vargas governou o Brasil através da Rádio Nacional. Tudo aqui é música, é poesia. O brasileiro e a brasileira vivem em plena imaginação de criatividade permanente.
Em entrevista ao ‘Estadão’, seu amigo Gilberto Gil disse ser otimismo demais que a pandemia tenha força para refundar a essência das pessoas. Você concorda?
Eu acho que toda essa experiência altamente traumática de sofrimento e dor, com a chegada do vírus contrastando com as conquistas inacreditáveis da ciência, incentivará a imaginação de todos. É preciso falar sobre essas coisas de qualquer maneira para que elas mudem para sempre. O filósofo Carvaka disse que apenas duas coisas importam: boa digestão e nenhuma consciência. Nos Upanishads (escrituras consideradas instruções religiosas pelo hinduísmo), está escrito: tudo é sofrimento. E logo abaixo: gostar de tudo que acontece. Por fim, as últimas palavras do Buda: embora seja inútil, não negligenciai esforços.
Regina Duarte foi criticada por artistas, especialmente após a entrevista dada para a CNN. Qual sua opinião sobre ela? (a entrevista foi feita antes de Regina deixar o cargo)
Eu não concordo em nada com o que ela diz. A visão dela está equivocada. É justamente nas horas mais atrozes que as vozes dos artistas têm que ser ouvidas. Eles mudam a realidade da história. Nas escolas de samba, nos candomblés, em todos os lugares as pessoas continuam compondo e fazendo versos que, no fundo, são orações para o bem-estar em direção a uma felicidade que se situa tanto no futuro distante como no instante em que ela está sendo fabricada no meio do horror, exaltando o amor.
Você batizou seu disco mais recente com o título ‘Não Há Abismo em que o Brasil Caiba’, frase de Agostinho da Silva. Essa frase continua válida para o Brasil de 2020, diante de tantas divisões políticas e de questões relativas à desigualdade social potencializadas pelo novo coronavírus?
Sim, as palavras de Agostinho são cada vez mais atuais. Quanto maior o contraste com que vivemos, maior será a força do contrário. Nunca poderemos nos calar. O tempo todo, as orações, as músicas, os cânticos, a poesia, a pintura trarão sempre o átomo do otimismo. Isso não quer dizer que esse otimismo ignore o pessimismo e o terror. Ele apenas os engloba e os transforma em algo superior.
Há quem afirme que a pandemia pode servir de pretexto para o fim da democracia em alguns países. Você vê essa perspectiva como verossímil?
Eu vejo sempre todas as possíveis perspectivas de tudo. O acaso, as intenções, o instante do momento em que tudo se dá forjam as saídas mais surpreendentes. Mas eu acho que uma situação em que, num mundo de 8 bilhões de pessoas, a renda é concentrada nas mãos de 1% terá que se acabar. Isso se dará quando todos tiverem condições de trabalho digno, de tempo para o devaneio (que talvez seja o mais importante porque é o da criatividade e do amor). A ciência está do nosso lado e a maioria dos povos do mundo também está do nosso lado, no sentido de estar do lado dessa ideia.
Quais seus planos para 2020?
Os planos são os que estou concretizando. Escrever, cantar, falar, irradiar a notícia sempre nova da esperança. A esperança não é a última que morre, ela nunca morre. E como disse São Paulo, mesmo quando não houver mais nem fé, nem esperança, o amor continuará a resplandecer no universo. “A religião é o coração de um mundo sem coração”, Karl Marx.
Em 17 de janeiro de 2021, você faz 80 anos. Como quer ver o Brasil e o mundo no dia do seu aniversário?
Deslumbrantes, com emprego para todos os brasileiros, salários dignos, nossas florestas asseguradas, a liberdade imperando em todos os lugares, a compreensão mútua. A compreensão mútua é a mais importante, e acontece sempre que se encontram opiniões diferentes ou mesmo inimigas em conversas, música, na ação, na experiência da vida. Tudo dentro do limite dos Direitos Humanos, que são sagrados e devem ser sempre respeitados e não são questão de opinião. A resposta é o trabalho, mas o trabalho criativo. No caso do Brasil, só avançaremos quando proclamarmos a segunda abolição da escravidão exigida por Joaquim Nabuco.