RIO - Enquanto o corpo de João Gilberto era velado no Teatro Municipal, na segunda-feira, já se davam nos bastidores as primeiras movimentações jurídicas em torno do espólio do artista. Sua filha Bebel Gilberto e Maria do Céu Harris (que se coloca como companheira do músico) entraram com pedidos de inventário naquele mesmo dia — ambas reclamando o direito de cuidar do processo. A disputa dá sequência a uma batalha judicial na qual elas já vinham em campos opostos — em 2017, Bebel solicitou a interdição de João, que Maria do Céu (aliada a João Marcelo, também filho do cantor) contestava.
— Bebel, como curadora, assumiu a gestão do patrimônio do pai. Com o falecimento dele, para que ela possa cumprir com diversas obrigações que existem, agora precisa trocar a curatela pela inventariança — argumenta Simone Kamenetz, advogada de Bebel.
A tentativa de Bebel e Maria do Céu gerirem o inventário de João é apenas parte das disputas que se iniciam com a morte do músico. Em 4 de setembro de 2003, ele escriturou um testamento — ao qual O GLOBO teve agora acesso exclusivo. Nele, determinou que seus bens fossem partilhados entre os filhos João Marcelo e Bebel (à época, sua caçula Luisa, filha de Cláudia Faissol, hoje com 15 anos, ainda não era nascida) e Maria do Céu — apesar de o documento trazer a informação de que “o testador declara, por fim, que não tem companheira”.
Como a lei afirma que 50% da herança têm que ser divididos entre os filhos, João dispôs dos outros 50% repartindo-o em partes iguais entre Maria do Céu e os filhos.
Em conversas com advogados ontem, Cláudia disse estar preparada para enfrentar e contestar uma eventual ação de reconhecimento de união estável movida por Maria do Céu. Cláudia teria conseguido ainda, em 2017, a revogação do testamento:
— Existe um segundo testamento, registrado em 2017 no 25º Ofício de Notas, que revoga os efeitos do primeiro — afirmou Cláudia.
Testamento revogado
Gustavo Carvalho Miranda, que era advogado de João Gilberto (e ainda representa João Marcelo), confirma as informações, mas faz uma ressalva:
— João teria assinado uma Escritura de Revogação de Testamento, para assim o documento de 2003 não ter mais validade. Entretanto, ele assinou em maio de 2017, ou seja, quando já não conseguia mais gerir a própria vida, e com isso, há questionamentos quanto à veracidade de tal revogação (em novembro de 2017, o músico foi interditado, ou seja, não estaria mais autorizado a praticar atos como assinar contratos e movimentar dinheiro, por ser percebido como incapaz de tomar esse tipo de decisão) .
Além do pedido de inventário, Maria do Céu entrou com outra ação nesta segunda, solicitando o cumprimento do testamento de 2003. Na petição (à qual O GLOBO também teve acesso), ela declara que João “de maneira pública e notória, (...) manteve uma união estável com a requerente desde 1984, que perdurou de maneira ininterrupta até o dia de sua morte”.
— A Maria do Céu reivindica a sua condição de companheira do João e a existência de um legado testamentário. Isto foi omitido pela filha Isabel, que requereu a abertura do inventário, sem mencionar a sua existência. — aponta Roberto Algranti, advogado de Maria do Céu Harris.
— Entrar com pedido de união estável é direito dela — pondera Simone Kamenetz. — Mas Bebel não a reconhece como companheira dele. Ela deve ter sido namorada em algum momento, mas sequer cuidou do João no final. Eles tinham um relacionamento pingue-pongue, que ia e voltava. No meio disso, ele teve outras namoradas, como a Cláudia (Faissol) , e até outra filha, a Luisa. Maria do Céu foi morar com ele depois que foi despejada. Ele não a convidou, ela simplesmente entrou no apartamento.
Apesar de João não possuir bens — e, mais do que isso, ter dívidas em torno de R$ 10 milhões —, corre na Justiça um processo movido por ele em 1997 contra a gravadora EMI (hoje pertencente à Universal) que pode render uma indenização de cerca de R$ 170 milhões. Em março deste ano, foi determinada a vitória do músico, em segunda instância — ainda cabe recurso. Na ação, o artista reclama royalties não pagos pela gravadora desde 1964, além de danos morais.
Futuro da obra é indefinido
Caso saia, porém, a indenização não irá toda para os bolsos dos herdeiros. Em 2013, o banco Opportunity assinou um acordo com João — intermediado por Cláudia, na época companheira do músico — no qual receberia 60% da indenização, quando e se ela saísse. Em troca, daria naquele momento R$ 10 milhões ao artista em duas parcelas.
A segunda parcela seria paga quando o músico aprovasse a remasterização de seus primeiros discos — bancada pelo Opportunity, que fez um acordo com o músico no qual teria direito à parte substancial dos royalties das vendas. João, conhecido por seu perfeccionismo, nunca deu seu ok.
Com a morte do João, não se sabe qual será o futuro desses discos — e da própria gestão da obra do criador da bossa nova. Afinal, o que está em disputa agora é algo de valor incalculável: o direito de determinar como será tratada sua memória.
— Temo que, devido à situação de caos que essas brigas refletem, ninguém mais queira mexer nessa obra, porque ela se tornou um ninho de marimbondos — argumenta Deborah Sztajnberg, advogada especialista em direitos autorais. — Um produtor que quer fazer um musical, um documentário, não sabe com quem negociar. Vai ter que conseguir a autorização de todo mundo, com o fantasma de a qualquer momento vir alguém embargar.