Neste 2019, o estado da Paraíba celebra, estuda, pesquisa, analisa, canta, dança, recria e respira Jackson do Pandeiro. O ano foi escolhido para ser tema central de uma série de comemorações conectadas com o sistema de educação. Não se trata de uma sessão naftalina. Jackson não é apresentado na condição apenas de representante da tradição; ele é reapresentado na singularidade de artista moderno, que misturava samba com rock, coco com samba, jazz com coco, chiclete com banana. É Jackson do Pandeiro pop.
E Brasília, onde Jackson do Pandeiro morreu em 10 julho de 1982, entrou na conexão com o artista gráfico pernambucano/brasiliense Jô Oliveira. Ele fez uma série de cartazes e ilustrações sobre o cantor paraibano para uma megaexposição, sob a curadoria de Fernando Moura (biógrafo do cantor), Joseilda Diniz e Chico Pereira, no chamado Museu dos Três Pandeiros, desenhado por Oscar Niemeyer, em Campina Grande (PB).
As imagens de Jô são usadas como uma espécie de logomarca do evento: “A minha ligação com a música de Jackson do Pandeiro e de Luiz Gonzaga vem desde os tempos de criança”, explica Jô. “Para mim, foram eles que deram a grande revelação de uma imagem do Nordeste. Só havia a imagem de miséria e seca. Embora fizessem música, as canções deles tinham uma narrativa visual. Foram determinantes para que eu escolhesse um caminho popular”.
Jô lembra que ia ao cinema para trocar gibis e ver seriados norte-americanos. Ao mesmo tempo, o Nordeste se materializou também nos bonecos de Vitalino e nas xilogravuras do cordel. O cinema brasileiro ainda não havia abordado o cangaço: “A única informação que tínhamos vinha do rádio. Então, por isso, a música de Jackson foi tão importante para mim”.
Nos cartazes e nas ilustrações que criou para representar Jackson do Pandeiro, Jô incorporou as cores, os traços e os signos da cultura nordestina. Estão impregnados de uma psicodelia popular das festas e dos folguedos de rua: “Eu ilustrei muitos livros de clássicos de Shakespeare, dos Irmãos Grimm ou de Lewis Carroll. Levei algum tempo para compreender que tinham uma conexão forte com a cultura nordestina. Nos tempos de criança, eu achava que Branca de Neve era uma história que acontecia do outro lado da serra perto de onde eu morava. O conto popular se veste com roupa local. Então, tento colocar tudo isso nas imagens do Jackson do Pandeiro”.
Estímulo
Jô foi convidado a participar do projeto pela professora Joseilda Diniz, uma das curadoras de uma grande exposição em cartaz no Museu dos Três Pandeiros (há também um memorial, em Alagoa Grande, com objetos e imagens do filho mais famoso da região). Ela estimulou Jô a compor a figura de Jackson com traços da cultura pop da década de 1960, aliado aos elementos da cultura popular nordestina.
Em uma delas, Jackson toca o globo terrestre como se fosse um pandeiro. O paraibano era um cidadão do mundo pela cultura. O museu fez um mapeamento de toda a produção em cordel e xilogravura sobre Jackson do Pandeiro. Além disso, encomendou aos artistas novas produções sobre o rei do ritmo: “O próprio Jô Oliveira se debruçou sobre esse imaginário”, comenta Joseilda. “Reeditamos folhetos e fizemos editais para a criação de folhetos inéditos sobre Jackson. A Secretaria de Educação do estado estabeleceu como atividade obrigatória o ensino da obra de Jackson do Pandeiro por meio de festivais, palestras e visitas a museus”.
Entrevista / Fernando Moura
Fernando Moura é coautor da melhor biografia sobre Jackson do Pandeiro, O rei do ritmo, escrita em parceria com Antonio Vicente. Nesta entrevista, ele fala da invenção e da atualidade do cantor paraibano.
Jackson do Pandeiro é relegado à condição de artista da tradição. Por que a abordagem dele como artista pop nas comemorações dos 100 anos do cantor paraibano?
Veja só, quem conhece o repertório dele conhece 30 ou 40 músicas, mas nós levantamos que ele tem 437 gravações oficiais, sem contar as domésticas. Deste repertório, você tem uma diversidade enorme, ele não pode ser tachado só de cantor de coco, de forró, de samba, de xote, de baião, de rojão, de maracatu ou candomblé. Não pode ser rotulado apenas de forrozeiro, ele é o rei do ritmo, no país mais musical do planeta. Então, ele transita por toda essa pluralidade de gêneros. Na época dele, ele era moderno.
Poderia dar um exemplo?
Ele foi o primeiro cantor da música popular brasileira a falar de mudança de gênero. Ele faz isso na canção A mulher que virou homem. Ele fez um twist, usou o rock, para criticar o twist. Em Chiclete com banana, ele diz: “Olha, não é só vocês que dão as cartas, nós, brasileiros, temos uma música interessante que vocês precisam aprender a tocar”. A temática, a letra, a sonoridade e o tratamento são modernos. Por isso, é pop, traz referências musicais históricas que a gente abandonou por deficiência da memória musical.
Com Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro, a música popular nordestina dá um salto. Como situa a relevância da invenção em Jackson?
A palavra correta é essa. São reinventores quando trazem as matrizes da tradição e adicionam novos elementos da cultura musical. No caso do Jackson, traz elementos do bebop, do jazz, do suingue, das orquestrações europeias. Ele foi músico de orquestras entre Campina Grande e Recife. Conviveu com maestros da qualidade de Moacir Santos. E não era só executante, ele participava dos arranjos das orquestras trazidas a Campina Grande. Por conta do algodão, muito dinheiro circulava, vinham orquestras para Recife que iam direto para Campina Grande. Ele absorveu tudo isso e colocou no coco e no samba.
Qual a relevância de Jackson para a consolidação do forró?
É total, mas, antes, é preciso compreender que o forró é um guarda-chuva para todos gêneros do Nordeste. Forró é o que designava o local da festa. Era o samba, o local da festa, era o baile. O forró se consolida com Jackson e Gonzagão. Alceu Valença disse que Gonzaga era o Pelé e o Jackson era o Garrincha. São dois gênios.
Qual é o mistério do ritmo em Jackson?
Acho que nasceu com algo intrínseco, mas a mãe era a referência como coquista. Ele dizia que tudo é coco, talvez com algum exagero. Mas faz certo sentido dentro da música dele. Se acelerar o samba, encontra coco. Depois, tem a influência dos emboladores de coco, dos repentistas, de Manuelzinho Araújo, de Caco Velho. Ele incorporou os elementos de Caco Velho, tanto que em Recife Jackson é conhecido como sambista. Com isso, ele criou um jeito muito pessoal de dividir o ritmo, de dividir a palavra e de tocar pandeiro.
Como vê a questão da apropriação do legado de Jackson?
Se for citar os cantores que ele influenciou, será preciso botar mais ficha no orelhão: Alceu Valença, Geraldo de Azevedo, Gal Costa, João Gilberto, Djavan, Lenine, Chico César... Pela diversidade dele, para onde apontar o canhão, acerta na mosca. Mas Jackson não tem herdeiro, quem canta o forró, genericamente, só canta forró. Se o camarada está nesta linha de Jackson, vai pegar o repertório de Jackson associado a alguma de suas vertentes. Mas a maioria das pessoas não conseguem regravar a música dele, pois são muito difíceis de gravar. As pessoas são influenciadas por alguns aspectos.