Sob o pseudônimo (inútil) de Robert Galbraith, chega ao país mais uma obra da criadora de Harry Potter & Cia. “Sangue revolto”, da inglesa J. K. Rowling, é a quinta aventura de Cormoran Strike e Robin Ellacott, sócios numa agência de detetives particulares. Ele é veterano, já bem respeitado no métier; ela é novinha, competente, um futuro brilhante. Desta vez, investigam um assassinato ocorrido há 40 anos. Conseguirão desvendar o caso?
Claro que sim, ou não haveria livro. Como em thrillers desse tipo, “Sangue revolto” reserva uma surpresinha básica no fim, com resolução coerente, após pistas falsas, personagens suspeitos, avanços e recuos — e é disso que o povo gosta. Tanto que o título, lançado na Inglaterra e nos EUA ano passado, recebeu o prêmio British Book Award de 2020, na categoria Crime e Ficção.
A partir daí, em mais de 900 páginas, Rowling tem espaço bastante para misturar muitas tramas, encher linguiça, confundir o leitor e partir para o final feliz. Escritora experiente e prolixa, bem assessorada, ainda não se mostrou tão inventiva na literatura adulta quanto em “Harry Potter”. Mas, mesmo sem grandes novidades, o entretenimento é garantido.
Strike e Robin são uma dupla afinada, quase feitos um para o outro. Poderiam até render momentos mais calientes, não fosse Rowling tão pudica. Eles vivem num chove-não-molha afetivo, mas algo ainda deve rolar entre os dois nos próximos livros da série — até porque sua criadora já declarou que não pretende dar fim a esses seus personagens tão simpáticos.
A propósito, não falta gente torcendo pelo fim não do casal, mas da própria escritora — e eis aqui a melhor história envolvendo “Sangue revolto”. Desde 2019, quando fez declarações deveras transfóbicas, Rowling já era alvo de críticas pesadas e pertinentes nas redes sociais. A perplexidade era justificada. O caso ficou em banho-maria, mas não morreu.
A situação ferveu mesmo quando “Sangue revolto” veio à tona, em setembro de 2020. Isso porque um dos personagens, Dennis Creed, usa roupas femininas para ganhar a confiança de suas vítimas, todas mulheres, antes de matá-las. Quando estas percebem o logro, já era. Com isso, Rowling foi acusada de reforçar o preconceito contra travestis e transgêneros.
Fãs decepcionados
Nesse caso, a crítica já não parece tão pertinente exclusivamente porque se trata, afinal, de uma criação artística — que, por definição, deve pairar acima das censuras. Quanto ao personagem, digamos que cada doido, fictício ou não, abre caminhos para viabilizar suas doideiras, criminosas ou não — e Creed as viabilizava disfarçando-se de mulher. Curioso é que críticos se incomodem com a ideia de um psicopata vestir-se como mulher, e não com os assassinatos em si.
A intriga não para aí. Há quem diga que Rowling adotou o pseudônimo Robert Galbraith em alusão a um psiquiatra homônimo já morto, pioneiro em terapia de “cura gay”, lá pelos idos dos anos 1970. Seria bizarro, mas ela negou, claro. Não adianta: aos 55 anos, a escritora agora está no meio de uma batalha pelo seu “cancelamento”. Milhares de fãs já se declararam decepcionados com ela, livrarias australianas suspenderam as vendas de seus livros e por aí vai. Aguardemos novos capítulos.
De qualquer maneira, esse boicote mostrou-se ótima peça de marketing de “Sangue revolto”. Pretendendo normatizar a criação artística na base do grito, as queixas só aumentaram a expectativa dos leitores. Resultado: as vendas no lançamento, na Inglaterra, ficaram acima do esperado.
Mas uma questão ainda está aberta: para que serve um pseudônimo se todo mundo sabe que é J. K. Rowling por trás dele?
* Nelson Vasconcelos é jornalista