30 de novembro de 2020 | 05h00
A certidão de nascimento saiu em setembro de 2019, quando o ateliê do artista e escritor Francisco Brennand foi oficialmente transformado em um instituto cultural sem fins lucrativos. Com isso, o gigantesco espaço de 15 km² de área construída, localizado no bairro da Várzea, no Recife, tornou-se uma entidade com o objetivo de preservar a obra do artista e de se tornar um polo cultural da região.
“Foi um gesto nobre de Brennand, pois o espaço, durante 30 anos, foi voltado para a sua criação artística e nunca houve uma gestão voltada para o público”, comenta Marianna Brennand, sobrinha-neta do artista, nomeada presidente do Instituto Oficina Cerâmica Francisco Brennand. “Ele sempre se preocupou com a preservação de sua obra, mas desejava também que a Oficina pudesse sediar outros programas culturais tanto da cena artística pernambucana quanto brasileira.”
Brennand morreu em dezembro de 2019, aos 92 anos, deixando um acervo monumental, tanto na quantidade como na qualidade: cerca de 3 mil obras, entre pinturas e esculturas de cerâmicas, ocupam o espaço. Com o instituto, mais pessoas poderão conhecer a oficina, cujos trabalhos surpreendem qualquer visitante. Inicialmente, ali era uma antiga fábrica de telhas e tijolos fundada pelo pai do artista plástico, Ricardo de Almeida Brennand, em 1917. Desativada nos anos 1960, a área foi remodelada e, em 1971, nasceu a Oficina Cerâmica Francisco Brennand.
“No final da vida, ele não queria que a Oficina se transformasse em um museu restrito às suas obras, daí o nascimento do Instituto, que Francisco pôde ver nascer ainda em vida”, explica Marianna, uma das grandes conhecedoras e fomentadoras da obra do tio-avô, diretora do documentário Francisco Brennand (2012) e também idealizadora do livro O Universo de Francisco Brennand e responsável pela edição da compilação de memórias do artista, reunidas na caixa de quatro volumes intitulada Diários de Francisco Brennand.
O primeiro desafio de Marianna foi escolher profissionais que tanto entendessem e valorizassem a obra de Brennand como apresentassem propostas curatoriais de oficinas e exposições que não apenas dialogassem com aquele acervo como incentivassem novas criações. Tais requisitos foram encontrados em Lucas Pessôa, que teve uma participação decisiva no redesenho do Masp nos anos 2010, o que permitiu que o museu retomasse sua importância no âmbito nacional e mundial – ele assumiu a direção geral do Instituto, em novembro do ano passado.
Pernambucano, desde jovem Pessôa conhece a importância do trabalho de Brennand, mas, sobretudo, de sua Oficina, instalada em uma área ambiental que é protegida pela família há mais de um século, o que se torna um tesouro quando florestas e matas ardem criminosamente pelo País. “Essa é uma instituição que emerge num contexto de desmantelamento civilizatório e colapso ecológico”, comenta Pessôa. “Esse conjunto único no mundo será o ponto de partida para um programa curatorial e educativo que amplifique e potencialize esse legado, reconhecendo sua vocação pública como espaço de reflexão e fomento ao pensamento crítico, além de atuar como vetor de desenvolvimento da comunidade do entorno.”
Para compor o grupo de trabalho, foi convidada Júlia Rebouças para assumir a direção artística do Instituto. Não foi uma escolha aleatória: além de ter sido cocuradora da 32ª Bienal de São Paulo, ela integrou o grupo de curadores do Instituto Inhotim, um dos maiores museus a céu aberto do mundo, situação semelhante ao espaço que hoje abriga as obras de Brennand.
“Ele nos deixou um legado artístico de grande importância, que inclui esculturas, pinturas, gravuras, desenhos e textos, mas também a Oficina, com sua cidadela, jardins, construções preservadas, espaços de convivência e a rica presença do Rio Capibaribe e da Mata da Várzea, constituindo um espaço institucional de feições absolutamente próprias”, observa Júlia.
O grupo iniciava seu trabalho quando a pandemia provocada pelo novo coronavírus deixou cada um isolado em sua casa. “De uma certa forma, foi positivo pois pudemos elaborar melhor os projetos iniciais”, conta Marianna. Assim, durante a reclusão, uma série de projetos foi definida e todos partindo de três conceitos que se tornaram os pilares curatoriais do Instituto: Natureza, Território e Cosmologia. São características que se observam na obra de Brennand e que permitem abrir para novas práticas artísticas.
Assim, Natureza propõe a construção de pontes entre cultura e meio ambiente, Território amplia a relação entre entorno e produção artística, e Cosmologias se apoia nas diferentes cosmovisões que marcam a obra de Brennand.
Assim, o primeiro passo foi dado com lives em que eram explicadas cada eixo. Nesta terça, 1º, às 19h30, a conversa será sobre Cosmologias (os debates sobre Natureza e Território podem ser vistos no site do Instituto) – esse trabalho tem a curadoria de Catarina Duncan. Como a Oficina completa 50 anos em 2021, uma grande retrospectiva da obra de Brennand está prevista para junho. Em setembro, haverá uma mostra coletiva de artistas pernambucanas e brasileiras, que vai culminar, em dezembro, com a chegada da icônica e monumental escultura Spider (Aranha), da francesa Louise Bourgeois.
Também no segundo semestre, o Instituto deve abrigar uma exposição inédita do artista Ernesto Neto, que deve ocupar o galpão com pé direito de 14 m, onde ele, pela primeira vez, trabalhará com cerâmica, dialogando com as origens históricas do local. E, ao longo do ano, dependendo do controle da covid, estão agendadas residências artísticas e programação educativa. “Queremos que a Oficina seja um espaço público que vá muito além de um museu a céu aberto”, afirma Marianna.