Aproveitei os dias não presenciais da folia momesca para três atividades nada relacionadas dos folguedos suspensos: aplaudir os carnavais de outrora pela TV, e ler O Homem Medíocre, consagrado trabalho de José Ingenieros, argentino notável falecido na passada década de vinte. E me preparar para ler os dois volumes de uma das obras mais importantes do século XX: O HOMEM SEM QUALIDADE, Robert Musil, 5ª. edição, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2021, 688 p. (v1), 568 p. (v2).
O livro é um ensaio dirigido aos jovens, propondo tarefa nobre: estigmatizar a rotina, a hipocrisia e o servilismo, três grandes virus que desenobrecem a vida de qualquer um. E a orelha do livro já traz sadia advertência: “É rigorosamente verdadeiro que os sujeitos mais depreciáveis são justamente os pregadores da moral, raramente ajustando o próprio comportamento à prodigalidade de suas palavras.”
Muito diferentemente, Ingenieros sabia bem renunciar a costumes e engajamentos considerados por ele perniciosos e que escrevia sem ruborizar-se, diferentemente dos sepulcros caiados denunciados pelo Homem de Nazaré, que denunciava os observadores dos arqueiros mínimos nos olhos dos vizinhos, pouco se lixando para as traves enfiadas nos seus próprios globos oculares.
No ensaio tornado público pela Juruá Editora, Ingenieros divide os seres humanos em três categorias: inferior, medíocre e superior. O inferior possui uma personalidade não desenvolvida, vivendo abaixo da moral e da cultura dominantes. O superior é original e imaginativo, pensa melhor do que o meio em que vive e pode sobrepor ideais próprios às rotinas dos demais.
Já o ser humano medíocre é sempre imitativo por excelência, adaptado para viver em rebanho, a refletir rotinas, preconceitos e dogmatismos para sua domesticidade. Incapaz de concretizar um ideal, pensa pelas cabeças dos demais, encontrando-se fora dele o talento, a dignidade e a virtude. Os medíocres são “cegos para as auroras, ignorando a quimera dos artistas, o sonho dos sábios e as paixões dos apóstolos”.
O cartão de visita dos medíocres é a sua vulgaridade. Admiradores de um utilitarismo egoísta, imediatista, miúdo e mesquinho, ignoram que as grandezas do espírito exigem a cumplicidade do coração, posto que “o homem sem ideais faz da arte um ofício; da ciência, um comércio; da filosofia, um instrumento; da virtude, uma empresa; da caridade, uma festa; do prazer, um sensualismo”. E a consequência não poderia ser outra: “a vulgaridade transforma o amor à vida em pusilanimidade, a prudência em covardia, o orgulho em vaidade, o respeito em servilismo”.
Não recomendaria a leitura do ensaio de José Ingenieros aos mediocres. Eles certamente não o entenderiam, posto que dotados de portentosa indigência intelectual, carecendo de bom gosto, toda leitura neles produzindo os efeitos de um lento envenenamento.
O homem medíocre nada assume. Originalidade causa-lhe calafrios. Como não aprecia decidir, remete as alternativas para uma assembléia chamada de coletivo, onde os seus esclarecimentos para o andamento dos trabalhos tornam-se dispensáveis, posto que sensaborões e nada elucidativos.
O medíocre carrega uma característica: a inveja. Analisa José Ingenieros: “se possui a intenção de praticar o bem, equivoca-se até chegar ao assassinato: poder-se-ia dizer que se trata de um cirurgião míope, predestinado a ferir os órgãos vitais e conservar a víscera cancerosa”.
Um poeta, Joaquim Maria Batrina, é lembrado no livro O Homem Medíocre, quando analisa a incapacidade do dirigente peba em diferenciar inveja e emulação. Eis os versos: “A inveja e a emulação / parentes dizem que são; / embora em tudo diferentes, / finalmente também são parentes, / o diamante e o carvão.”
Dante, na Divina Comédia, considerou os invejosos indignos até do inferno. No entanto, ele em muito ampliaria as dependências da capetania (terras do Capeta) para os medíocres, aqueles que não vislumbram oportunidades sadias, despreparados sempre para funções socialmente responsáveis.
A terceira atividade prevista, ainda não me debrucei sobre ela. Apenas li o prefácio feito pelo Marcelo Backes, escritor, tradutor e professor PhD em Germanística e Romanística pela Universidade de Freiburgo, Alemanha. Que considera o livro a maior obra filosófica do século XX, explicitada num romance que reflete magnificamente a alma arruinada de um século.