HISTÓRIA DO CRISTIANISMO
A. C. Dib
Em tempos de quarentena, para os apreciadores da boa leitura, notadamente para quem curte Teologia Cristã e, principalmente, para os apreciadores de História, a pedida ― ou a boa ― é a leitura das obras Vida de Cristo, de J. Perez de Urbel, História Eclesiástica, de Eusébio de Cesaréia e A Igreja dos Apóstolos e dos Mártires, da série História da Igreja de Cristo, de Daniel-Rops. E a dica é ler as três obras exatamente na sequência aqui apresentada, em atenção à ordem cronológica dos fatos narrados.
Frei Justo Perez de Urbel foi um erudito monge beneditino, nascido em 1895, na Espanha, e falecido em 1979. Além de Alta Teologia, especializou-se em História Medieval. Sua primorosa obra ― a que aqui focamos, eis que escreveu outras ― Vida de Cristo apresenta os fatos narrados nos quatro Evangelhos em rigorosa ordem cronológica, da expectativa judaica pela vinda do prometido Messias ao nascimento de Jesus Cristo até sua morte, ressurreição e ascensão, narrando todos os milagres descritos nos textos evangélicos, sermões, parábolas, demais ensinamentos e feitos. Todos os fatos e passagens evangélicas da vida de Cristo são criteriosamente contextualizados e ambientados em seus aspectos históricos, geográficos e culturais. Regada com bom número de fotos, ilustrações e mapas, a obra narra toda a história de Jesus sem descuidar da análise da psicologia social reinante ― tanto no mundo romano como também na Palestina ― e da análise descritiva das personagens e locais envolvidos nos fatos ― com alusão a dados históricos. Os atos e fatos, apresentados em sua linha temporal, importa frisar, são narrados em linguagem clara, direta e acessível, com explicações importantes e informações adequadas à boa compreensão. Obra indispensável aos fiéis de Cristo, aos estudiosos de Teologia, aos historiadores e demais curiosos da vida de Cristo e da vida na antiguidade.
Na sequência, indicamos o clássico História Eclesiástica. Nascido em Cesaréia, na Palestina, entre os anos 260-265 da Era Cristã, o Bispo Eusébio foi contemporâneo do Imperador Constantino. Participou, portanto, diretamente, de muitos fatos narrados em sua obra, como o Concílio de Nicéia que definiu o Credo Católico (que aglutina em si os principais dogmas de fé do cristianismo, notadamente o católico). Acompanhou ― e sofreu ― pessoalmente a crudelíssima perseguição do Império Romano aos cristãos e testemunhou a grande reviravolta histórica que resultou na vitória do cristianismo, com a miraculosa conversão do Imperador Constantino. Viu o nascimento de muitas das grandes heresias do tempo, deixando-se, aliás, seduzir pelo arianismo. Envolveu-se, assim, em sérias polêmicas, mas sempre cauteloso, guardando respeito às decisões eclesiásticas, ainda que delas discordante. Se como teólogo Eusébio de Cesaréia se mostra discutível, ao invés, como historiador é considerado o “Pai da História da Igreja”. Estudioso acurado, pesquisador sério e comprometido com os fatos, homem de grande cultura helenística, sua obra pioneira vem servindo de base aos estudos históricos que a ela se seguiram. História Eclesiástica pertence à chamada “Literatura Patrística”, a literatura cristã dos primeiros tempos, ou dos “tempos heroicos” ― Séculos II, III e IV d.C. ―, a literatura dos assim chamados “padres da Igreja”, os grandes apologistas fundadores da teologia cristã.
A obra principia contextualizando o cristianismo como materialização e cumprimento das profecias judaicas sobre a vinda do Messias, com sumária narrativa da vida de Jesus. Segue abordando os fatos contidos nos Atos dos Apóstolos. E por aí vai, trilhando na ordem histórica e cronológica dos fatos narrados. Trata, na sequência, do desenvolvimento em todo o mundo romano da doutrina cristã; dos principais líderes da Igreja na Ásia, África, na Europa imperial e em Roma. Fala dos grandes apologistas, doutrinadores e suas obras. Cuida das grandes perseguições, dos atos de heroísmo de santos e mártires. Trata, igualmente, dos grandes debates teológicos motivados pelo aparecimento das heresias interpretativas. Conclui sua narrativa pela conversão do Imperador Constantino, com sua vitória sobre os rivais Maxêncio e Licínio e a consolidação e unificação de seu poder político ― correspondente à legalização do cristianismo e à sua posterior hegemonia. Eusébio de Cesaréia morre poucos anos após a morte do bravo Imperador (de quem foi fã confesso e incondicional).
Daniel-Rops, pseudônimo de Henri Petiot, nasceu e faleceu na França (1901-1965). Professor de História, conquistou fama por sua obra de historiografia, a coleção História Sagrada, composta por: O Povo Bíblico (1943), Jesus no Seu Tempo (1945) e História da Igreja de Cristo (1948-65) em onze tomos. Publicou, ainda, obras de literatura infantil e romances históricos. Eleito para a Academia Francesa de Letras em 1955, conquistou o Grande Prêmio de literatura da Academia Francesa em 1946. A coleção História da Igreja de Cristo narra, pormenorizadamente, toda a trajetória da Igreja, dos fatos situados nos Atos dos Apóstolos até os presentes dias.
A obra que ora focamos é A Igreja dos Apóstolos e dos Mártires, primeiro volume da extensa série História da Igreja de Cristo. Historiador sério e confiável, Daniel-Rops, na obra referida, desenvolve com maior riqueza de detalhes e de informações a narrativa histórica de Eusébio de Cesaréia (fala, aliás, do próprio autor da História Eclesiástica, de sua obra e de sua vida). Ainda que católico, mostra-se, sempre que necessário, imparcial e, mesmo, crítico à conduta das personagens e a seus eventuais desvios. O texto tem início pela atuação dos apóstolos, com ênfase no maior missionário de todos os tempos: São Paulo. Trata das grandes perseguições aos cristãos ― como foram incontáveis, ao longo dos quatro primeiros séculos pós Cristo, centra atenção nas principais ―, enaltece a atuação heroica dos principais mártires (foram inúmeros os martirizados, a grande maioria pessoas modestas e anônimas) e analisa a expansão da Igreja em meio à ferocidade das autoridades e do próprio povo fiel ao culto dos deuses romanos. Tamanha é a isenção do historiador que não deixa de considerar e louvar o idealismo e talento de estadista de muitos dos mais sanguinários governantes romanos, inserindo sempre as práticas violentas na cultura e costumes da época. Analisa meticulosamente a lenta decadência e agonia do Império, discorrendo com atenção sobre causas e consequências desse declínio (aspectos políticos, econômicos, morais e culturais), tendo em conta que dito declínio era inversamente proporcional ao avanço do cristianismo. Discorre igualmente sobre a atuação e valor dos principais líderes católicos de cada século, com forte atenção para a obra teológica de cada um desses ― literatura patrística. Por fim, analisa a cultura e a arte cristã em cada uma dessas fases. A obra se encerra pela vida e morte do Imperador Teodósio, o último dos grandes do Império Romano e que oficializou o cristianismo como religião do império.
Maravilhosa e válida é a gama de conhecimentos que a leitura dessas três obras proporciona, além de constituírem leitura saborosa e de grande prazer. Compreende-se o gradual e vitorioso desenvolvimento do cristianismo, que, em meio a brutais e animalescas perseguições, expandiu-se e consolidou-se pelo talento, determinação e heroísmo de tantos santos, mártires, teólogos, apologistas e idealistas missionários, além da fé viva e militante de legiões de pessoas simples, mas apaixonadas. Vemos a concretização dos textos canônicos, tidos por inspirados, o embate contra as muitas heresias advindas nesses séculos primitivos, a confirmação do credo de fé e o desenvolvimento da teologia, que apresenta os primevos lampejos de vida já no Evangelho de São João. Mesmo para os não crentes, as informações históricas valem sobejamente a leitura. “Recordar é viver”, diz o ditado. E eu acrescento: conhecimento nunca é demais; sempre cabe mais um pouco. E nada ensina mais que os erros do passado.
Claro que para os fiéis, o sucesso da Igreja se deve à ação permanente do Divino Espírito Santo sobre ela e sobre seus militantes. Sem a vontade Divina, dizem os homens de fé, o triunfo verificado não se materializaria. E tudo teve início na paupérrima e longínqua província da Palestina, iniciada a missão por doze homens modestos, humildes, obscuros, mas carregados de fé inabalável.
“A fé move montanhas”! ― reza a máxima cristã.