HERODES (CONTO DE HUMBERTO DE CAMPOS)
HERODES
Humberto de Campos
(Grafia Original)
O vapor fluvial que demandava a região do Xingu, no Baixo-Amazonas, acabava de atracar ao pequeno trapiche do barracão ribeirinho, suspenso nas águas sobre duzentas antenas de madeira, no ponto em que o rio Mapuá se bifurca para melhor abraçar a floresta alagada, e onde eu vivia sozinho, com um miserável seringueiro empaludado. A água escura, quieta durante um mês, ondulava, agora, nervosa, assustada pelo choque das hélices da embarcação civilizada. Seringueiros opilados, com os olhos quase escondidos no rosto inchado e terroso, olhavam, de longe, debruçados no alpendre de zinco do armazém, o "gaiola" formigante de marinheiros e de "brabos", o qual havia deixado dias antes, e voltaria a rever em breve, um mundo que eles não veriam mais. Um espanto, um susto alegre, uma inquietação feliz, parecia apossar-se das coisas, em torno, naquela festa de meia hora. Dentro de alguns minutos, o navio desceria a corrente do rio, deixando tudo, de novo, mergulhado no silêncio e na morte.
Embarcada a borracha amassada com a lama na terra e com o sangue dos meus homens, e recebidas as mercadorias destinadas aos seringais do centro, o comandante do "gaiola" chamou-me ao seu camarote, e pediu-me que recebesse no barracão, como um serviço à sua pessoa e à casa comercial a que a embarcação pertencia, um doente que vinha a bordo e que talvez não resistisse aos múltiplos inconvenientes da viagem. Se melhorasse, eu devia mandá-lo, numa canoa, para a foz do rio, onde o reembarcaria, no regresso. Disse-me isso enquanto me servia um cálice de vinho do Porto e eu admirava, com inveja, os gabes dourados que lhe enfeitavam o boné branco e o fardamento cuidado. Sem refletir muito sobre a responsabilidade que assumia, subornado pela gentileza daquele homem que me levava a civilização e a perfídia no gargalo de uma garrafa, aquiesci sem relutância. E os marinheiros desembarcaram para o barracão, onde os mosquitos chiavam na sombra, o corpo macilento de um indivíduo de quarenta anos, mais ou menos, em cujas linhas fisionômicas, a enfermidade, e o meio em que ultimamente vivia, haviam alterado os traços de uma antiga distinção. Nos seus olhos escuros, que a febre incendiava intermitentemente, boiavam a revelação de uma vida civilizada, a reminiscência de sociedades polidas, a lembrança inequívoca de um ambiente invulgar. A barba negra e cerrada, pontilhada de fios de prata, tentava esconder os traços finos, indícios de origem, do rosto moreno e cavado, que o paludismo esverdeara. As mãos pequenas e magras que a alisavam, traíam, porém, a dissimulação, denunciando no gesto elegante e no feitio gracioso a companhia em que se haviam educado. Ao menor movimento, pareciam comprimir, ainda, a pelica de uma luva ou uma cintura de mulher.
Desaparecido o vapor na curva do rio, tratamos, eu e o meu companheiro, de alojar o nosso hóspede. Enquanto os seringueiros, remando as suas "montarias", subiam os dois braços fluviais para um novo degredo de trinta dias, dávamos nós, ao enfermo, o compartimento mais abrigado que havia em nosso ninho de abutres. Pusemos-lhe à disposição os nossos cobertores, o nosso quinino, as nossas bolachas, que ele agradecia com desconfiada dignidade, como se estivesse prisioneiro de selvagens.
Ao fim de dois dias, durante os quais a febre não o abandonou, aumentando em horas certas, em solavancos que lhe faziam bater os dentes e chocalhar os ossos, éramos amigos, quase íntimos. A solidão identifica as almas, e a desgraça as aproxima. No degredo há uma ânsia permanente de confidências. Fiz-lhe, por isso, as minhas, contei-lhe a minha existência heroica e atormentada. E ele já me havia dito que era do Rio de Janeiro, onde se formara em medicina, e onde exercera a profissão durante dois lustros, com alto sucesso mundano. Abandonara o sul por fastio da vida, e procurara a Amazônia para refazer os sentidos, entorpecidos da ciência, bêbados de civilização.
À noite do terceiro dia, bateram, porém, à porta do meu quarto. Era o caboclo, meu companheiro, que, encolhido, as mãos unidas no peito, a cabeça guardada nos ombros, tiritando, matracando as maxilas sem dentes, assaltado também pela febre, me vinha chamar para ver o nosso hóspede, que regougava sinistramente no seu aposento. Levantei-me às pressas e atravessei o alpendre. A noite sem lua estava toda enfeitada de estrelas, que se miravam no espelho quieto do rio. A floresta, na outra margem, era como um grande muro de bronze edificado sobre uma lâmina de aço, que lhe duplicava o perfil. Mil vozes retalhavam o silêncio em pedaços miúdos, tornando-o indivisível. Batráquios e insetos pareciam procurar um ponto vago no tempo e no espaço a fim de enfiar o alfinete sonoro do seu grito. Uma pirarara fez espadanar a água, de súbito, em luta com algum peixe de grande vulto, e partiu, como um torpedo, agitando a superfície do rio. A alma da Natureza dormia, mas o seu corpo velava, no ritmo inconsciente da vida.
À porta no quarto do enfermo, parei, escutando. Não havia luz, lá dentro. Da escuridão vinha, porém, uma agitação de esqueleto, como se os demônios estivessem mudando, àquela hora, o ossuário de um cemitério. Chamei pelo meu novo amigo, e a sua resposta foi um uivo estrangulado, seguido de um resfolegar de bomba hidráulica, em que se misturavam na garganta e nos brônquios o ar da vida e a espuma da morte. Acendi uma vela e depois de lhe olhar o rosto, angustiosamente alterado, preguei a estearina no soalho, para aquecer alguns goles d'água, em um caneco de ágata. O trabalho era, entretanto, difícil. Incomodados pela luz, que se ia refletir na lama através das frestas do tabuado, os jacarés, que dormiam embaixo do barracão, davam rabanadas furiosas nas tábuas, abalando-as, aos bufos. E eu, para evitar que a vela tombasse, amparava-a com uma das mãos, segurando com a outra o caneco d'água, que precisava aquecer.
Com água quente, a que adicionara algumas gotas de acônito, o frio diminuiu progressivamente ficando apenas a febre alta, a devorar o doente. E foi nesse estado que o meu enfermo, num equilíbrio súbito das suas faculdades de raciocínio, me confessou, com grandes pausas, como se eu fosse um ministro de Deus; a sua história terrível.
— Eu lhe vou deixar, meu amigo, — disse, começando, — eu lhe vou deixar, como herança da minha gratidão, o segredo triste do meu destino e da minha miséria. Uma lição do mundo é sempre um tesouro. E eu lhe vou entregar, com as mãos vermelhas de sangue, as chaves do cofre da minha vida.
Os olhos brilharam-lhe sinistros, reproduzindo a chama da vela, como se guardassem dois esquifes. Interrompeu-se, de repente, como se se tivesse arrependido. Um largo silêncio, cortado apenas pela sua respiração agitada e pela vaia fina de um grilo escondido em toda parte, encheu o quarto. Depois, continuou:
— Na sua idade, eu tinha a alma congestionada de sonhos, e o coração repleto de ambições, que me torturavam. Não eram sonhos de riquezas, desejos de domínio, ambições de poderio. Não queria comandar os homens, que, para mim, não existiam; queria dominar as mulheres, que, para mim, eram tudo na terra. Queria-as a todas, e como não as tinha a todas, votava rancor aos homens que possuíam as que não eram minhas. Era sentimental e egoísta; mas de um egoísmo doentio, que chegava ao delírio maridos, noivos, namorados, eram atingidos, todos, pela peçonha do meu despeito, pela baba do meu ódio. Um beijo estalado na boca de outro, um sorriso mandado a outro que não a mim, envenenava-me, dava-me uma noite de insônia. Que as mulheres lindas não fossem minhas; mas, também, que não fossem de outros braços, de outros lábios, de outra luxúria.
Um regougo, semelhante ao de uma onda numa urna marinha, interrompeu-o. Tossiu e, vencendo uma dispneia angustiosa, reencetou, com dificuldade:
— Essa preocupação turvava até as minhas conquistas felizes, o meu prazer, as minhas horas de ventura. Quando eu me apossava de um coração ou de um corpo que pertencia a um esposo, a um amante, a um namorado mais velho do que eu, essa mesma posse era perturbada pela visão do que fariam comigo mais tarde, quando eu fosse tomando na terra o lugar deles, e outros homens mais novos tomassem o meu. Os maridos, os amantes, os noivos de agora, seriam vingados. Dentro de alguns anos viriam outros homens; mais jovens, mais vigorosos, mais arrogantes, que tomariam, por sua vez, minha noiva, minha mulher, minhas amantes. E comecei a odiar os homens.
Os sapos, nas duas margens do rio soturno, espaçavam o coaxar ensurdecedor, a que se misturavam ainda as mil vozes, os mil gritos, os mil anseios da noite que declinava. O enfermo calou-se por um instante, e reatou, ainda mais opresso, repetindo a última frase:
— Comecei a odiar os homens... Eram meus inimigos, inimigos da minha ventura. Se eu os não matasse, eles me matariam, mais tarde, na velhice, impiedosamente, ferindo-me no coração... Pensei que fosse enlouquecer... Meu pai morreu louco... Eu tenho um irmão, louco, no Hospício, no Rio de Janeiro... Mas, era preciso que, depois de mim, não viesse ninguém que me disputasse as minhas mulheres!
Como se tivesse medo de mim, olhou-me fixamente, à luz da vela, os olhos febris, dizendo, rouco, num ímpeto:
— E comecei a matar os homens que nasciam!
Senti um arrepio de terror. O doente percebeu o meu espanto, leu-o nos meus olhos e na minha palidez, mas continuou:
— Minha profissão favorecia-me. Modifiquei a minha especialidade, entregando-me à obstetrícia e à pediatria. Ia receber os meus pequeninos inimigos à porta da vida, e declarava-lhes guerra. As mulheres eram perdoadas, abençoadas, amparadas. Os homens, não; a esses, eu perseguia implacavelmente com todas as armas traiçoeiras da minha ciência, e só os abandonava no túmulo, sob as lágrimas e as rosas das mães inconsoláveis... A minha clínica de crianças era uma hecatombe. Fui, entre elas, um lobo num rebanho!
Uma nova pausa, mais funda e mais longa, sacudida pela respiração ansiada.
Reatou:
— Um dia, suspeitaram. Era o escândalo, que se anunciava. Era a condenação, que vinha. Era a prisão infalível. E eu fugi!
E num arranco:
— Fugi, matando crianças pelo caminho!
Um tremor mais forte de todo o seu corpo sacudiu a rede até os punhos. Esperei que continuasse. Como a pausa fosse demorada e as suas convulsões me enchessem de pavor, corri para o alpendre, a respirar o hálito da manhã, que nascia. Quando voltei, o aposento estava em silêncio. Apenas o pavio da vela, que eu deixara no soalho, agonizava, num lago de cera derretida. Chamei o meu hóspede. Estava morto.