No dia 14 de dezembro de 1918, as mulheres britânicas saíram de casa para votar pela primeira vez em eleições gerais. O fato foi a efetivação de uma conquistas obtida meses antes: em seis de fevereiro daquele ano, após seis décadas de uma incansável campanha que provocou um efeito cascata em diferentes países, elas conquistaram o direito de ir às urnas. Determinadas a enfrentar a intolerância de uma sociedade que as considerava lunáticas, as sufragistas criaram o que viríamos a conhecer como a primeira onda do feminismo. E hoje, em meio ao renascimento das lutas feministas, o centenário dessa conquista ganhou um sentido mais amplo. Assim a jornalista Claudia Sarmento iniciava a reportagem sobre o movimento sufragista, publicada na capa do Segundo Caderno do GLOBO em 27 de janeiro de 2018.
— É quase impossível não ligar a campanha das sufragistas aos movimentos globais contemporâneos, como o #MeToo e a Marcha das Mulheres — compara a pesquisadora Rose Capdevilla, especialista em estudos de gênero da Open University e coeditora da publicação acadêmica “Feminism & Psychology”. — Ambos, passado e presente, são expressões de cidadania ativa por parte de quem não se vê representado pelas estruturas de poder dominante, o que pode ser diretamente atribuído ao gênero. Na virada do século XX, a maior parte da sociedade não entendia por que mulheres queriam votar.
Pioneira da luta sufragista, Millicent Fawcett lutou pelos direitos da mulher num tempo em que se acreditava que o cérebro feminino, como desenhou um cartunista inglês da época, era feito para pensar em vestido, chapéu, casamento, bebê, cachorro e bombom. Ela criou, ainda no século XIX, a maior organização pela defesa do sufrágio e fez campanha para que as universidades inglesas aceitassem alunas. Num mundo de leis escritas por homens, encabeçou uma batalha pacífica e viu militantes presas, internadas em hospícios e espancadas. Em 1918, o voto foi aprovado apenas para eleitoras acima dos 30 anos e com certas condições sociais. Millicent esperou mais uma década para celebrar a inclusão de todas as mulheres.
Foi uma batalha longa e de várias frentes, uma delas liderada por outro ícone do movimento, Emmeline Pankhurst, a líder da ala mais radical das militantes, conhecidas como suffragettes — apelido resgatado agora para definir mulheres do século XXI que perderam o medo de erguer a voz contra desigualdades que persistem.
— O movimento #MeToo denunciou o comportamento patriarcal de homens poderosos. As mulheres envolvidas nas campanhas atuais pela igualdade são as suffragettes do nosso tempo — compara Elaine De Fries, coordenadora do Centro Pankhurst, em Manchester, fundado na casa onde Emmeline viveu com as filhas, e que abriga um museu e uma organização de apoio a vítimas de violência doméstica. O #MeToo é um movimento criado na internet para denunciar assédio sexual no meio cinematográfico de Hollywood.
A Grã-Bretanha programou uma série de comemorações para celebrar o legado das sufragistas. Para ativistas e instituições que fazem campanha pela igualdade de gênero, o mais importante é se debruçar sobre as lições deixadas por aquelas primeiras militantes feministas, que se vestiam de branco, verde e roxo — já demonstrando o aspecto político que a moda pode incorporar.
Diversas manifestações utilizaram outras cores, como mostraram as estrelas vestidas de preto no Globo de Ouro de 2018, e as causas se expandiram — das denúncias de assédio à briga contra o gap salarial. Entre as sufragistas e as feministas contemporâneas houve ainda uma revolução sexual ao longo do século XX. Mas as ligações persistem.
A ativista Lisa Clarke, porta-voz de uma campanha contra a objetificação da mulher nos populares tabloides britânicos, aponta convergências entre a sua briga e a que as mulheres do passado travaram. Lisa integra o coletivo No More Page 3, que fez pressão contra a publicação de fotos de mulheres de topless na página três do tabloide “The Sun”, o mais vendido do país. Considerada sexista, a prática se arrastou por 44 anos, mas acabou abolida em 2015, após as ativistas reunirem centenas de milhares de assinaturas de protesto.
— Temos uma enorme dívida com as sufragistas — reconhece ela. — Primeiro, aprendemos que é preciso muita força e ativismo implacável para conseguir mudanças. Segundo, é importante lembrar que mulheres de todas as classes sociais e raças lutaram pelo sufrágio, mas só uma parte conquistou esse direito em 1918. As operárias e mulheres mais pobres tiveram que esperar mais dez anos. Portanto, a mensagem é que nem todos os avanços beneficiam imediatamente todas. Ainda estamos aprendendo como unir e apoiar as que são afetadas por discriminações e intolerâncias múltiplas. Todo avanço importa, mas podemos maximizar o impacto se incluirmos mais mulheres nas nossas vitórias — observa a feminista, que defende abordagens diversas para impulsionar transformações, como as sufragistas fizeram.
Para ela, ser uma feminista no século XXI não é diferente do que era no início do século XX: lutar pela igualdade de direitos, de representatividade e de oportunidades. Os tempos eram outros, mas a resistência de Millicent, Emmeline e milhares de heroínas anônimas serviu de molde para o que viria nas décadas seguintes em diferentes pontos do planeta.
A disputa ideológica entre as sufragistas lideradas por Millicent Fawcett, que defendiam métodos constitucionais de pressão sobre as autoridades britânicas, e as suffragettes, que pregavam a desobediência civil e sofreram maior repressão, mostra que o feminismo que saiu vitorioso em 1918 não seguia apenas uma linha de pensamento. Era diverso dentro de um mesmo objetivo, como continua a ser um século depois. Mas a união que se formou entre mulheres que arriscaram tudo, entre família e empregos, também ficou como lição.
— Elas se juntaram e lutaram por algo no qual acreditavam. As sufragistas nunca desistiram, pressionando o Parlamento, escrevendo para deputados, fazendo um trabalho importante que não ganhava as manchetes. Já as suffragettes partiram para a ação direta e chamaram mais atenção — explica Gilliam Murphy, curadora da Women’s Library, que guarda o maior acervo sobre a história das mulheres no Reino Unido, na London School of Economics (LSE). — Mas o fato mais poderoso foi a solidariedade entre as mulheres demonstrada em eventos como as grandes manifestações pelo voto, semelhantes às marchas femininas que vimos em janeiro de 2017, após a posse de Trump.
Quando as sufragistas britânicas começaram a fazer campanha, mulheres nem sequer costumavam sair às ruas desacompanhadas em cidades como Londres. Tampouco podiam lutar pela guarda dos filhos. Autoridades espalharam a crença de que, se elas pudessem participar da vida política, o caos se instalaria nos lares da Inglaterra eduardiana, e famílias seriam destruídas. Vivida no cinema por Meryl Streep no filme “As Sufragistas” (2015), Emmeline Pankhurst cansou de ser ignorada, rachou o movimento e partiu para a clandestinidade convocando as militantes a fazer barulho, apedrejando vidraças, incendiando caixas de correio e se acorrentando às grades de prédios públicos, entre outras táticas. As detidas — e foram mais de mil — faziam greve de fome e eram alimentadas à força. Até que a Primeira Guerra eclodiu e não havia clima para uma guerrilha urbana.
— As sufragistas enfrentaram muitos obstáculos e derrotas. Mas persistiram. Seu triunfo nos faz acreditar que tudo é possível. Em 2018, estamos num ponto de ruptura. Mulheres, meninas e seus aliados do sexo masculino estão juntos para rejeitar a misoginia, a violência e o sexismo. Mas há aqueles que gostariam de voltar o relógio do tempo e desfazer avanços. A verdade é que a igualdade não virá por conta própria. Temos que continuar a brigar até chegar à geração que impulsionará as mudanças — acredita Sam Smethers, executiva-chefe da Fawcett Society, organização inspirada no legado de Millicent, que luta pela igualdade de direitos na Grã-Bretanha, onde 52% das mulheres dizem ter enfrentado assédio sexual no trabalho, por exemplo, segundo pesquisa divulgada em 2017.