GULULUPA
A. C. DIB
O senhor Héracles Alves era o inspetor de alunos do Liceu Piauiense.
O augusto e tradicional Liceu Piauiense compunha conhecida rede de colégios públicos dos estados do nordeste brasileiro, pelo que os estados federativos que se prezassem tinham o seu próprio Liceu – Liceu Maranhense, Liceu Cearense, etc.
Liceu, colégio ginasial, era instituição de ensino mista, ou frequentada por moças e por rapazes. O uniforme dos jovens estudantes denotava a importância e gravidade da provecta instituição educacional: uniforme de brim, de cor cáqui – estilo militar −, calça comprida com lista azul estendendo-se pelo lado de fora de cada perna, camisa social branca, gravata preta, paletó com quatro botões e dois bolsos fechados, cada bolso em um dos lados do peito e quepe de pano, sem aba, com lista azul correndo em ambos os lados.
Foi o célebre mestre João Arcanjo, pedreiro de renome, pintor, decorador, paisagista, arquiteto e engenheiro prático, talentoso artista plástico, carioca, contratado pelo Estado do Piauí, o responsável pelas obras decorativas e demais benfeitorias úteis e voluptuárias reinantes no Liceu Piauiense. Mestre João Arcanjo, vale frisar, foi, igualmente, o mentor e criador de outras relevantes obras públicas levadas a cabo em Teresina, como as dos Correios e Telégrafos, da Praça Rio Branco, da Praça Pedro II, erigindo e adornando em tais localidades coretos, bancos, praças com seus desenhos de jardins e outras artes.
Anos depois, o Liceu Piauiense teve seu nome alterado para Colégio Estadual do Piauí.
Voltando, então, para o senhor Héracles Alves, temos que o circunspecto inspetor de alunos do Liceu Piauiense era homenzarrão alvo, corado, de lustrosa cabeleira negra emplastrada com brilhantina e cuidadosamente penteada. Andava com tal apuro no vestir, enfiado em bem cortado terno de casimira, que, aos novatos e aos desavisados, poderia passar por diretor da veneranda casa educacional.
Cabia ao honorável bedel apontar, para a direção, o nome dos rebeldes e indisciplinados – isso quando não levava, ele mesmo, pelo braço ou pelos colarinhos, o traquinas. Percorrido, com ares severos e olhos de águia, corredores, pátios, salas, biblioteca e demais dependências da escola, observando o rigoroso cumprimento das regras, vigiando o uso do uniforme, censurando comportamentos, repreendendo e fiscalizando.
Por tais atribuições pouco simpáticas, o senhor Héracles Alves não era lá muito popular entre os jovens. Visto com certa animosidade pela estudantada, alvo de malquerenças e deboches, por vezes tinha seu bom nome gravado em paredões e muros, acompanhado de outros desairosos nomes. Outras tantas, a ofensa vinha gritada, não se sabe donde. E senhor Héracles, prontamente, punha-se a investigar, diligenciando à cata do injuriador.
Ocorre que para o atento censor e disciplinador nome algum era mais feio, mais ofensivo, mais imoral, ignóbil e abjeto que “gululupa”. Até hoje não se sabe bem que diabos queria dizer a tal ofensa de gululupa. O que se sabe é que na combativa cabeça do diligente inspetor nome algum poderia macular com superior gravidade a honra, a dignidade e o bom nome de um homem que a alcunha de gululupa. Em posse de tal informação, a rapaziada, que não era boba, não poupava boa dose de gululupas com o fiscal. E tome gululupa: gululupa daqui, gululupa dali e d’acolá.
Oswaldo, filho mais velho de Frutuoso dentre os filhos homens, veterano daquele educandário, certa feita, desejoso de pregar uma peça no inspetor de alunos, escreveu em seu quepe, com tinta preta e em letras garrafais, o tão temido impropério: G U L U L U P A. Ato contínuo, pôs-se a passear distraidamente pelas dependências da escola, assobiando e mirando os céus.
Desmedido foi o assombro do senhor Héracles ao cruzar com Oswaldo. Apuradíssimo, rubro, quase a suar, chamou por Oswaldo em voz baixa, mas com muitos acenos.
− Senhor Oswaldinho, senhor Oswaldinho, mas o que é isso aí em seu quepe?
Oswaldo, demonstrando surpresa, tirou o quepe da cabeça e o examinou.
− GULULUPA?! Mas o que é isso, senhor Héracles? – disse, em tom de grande espanto. – GULULUPA? Mas o que é isso?
− Schiiiiiiiiiiii! – exclamou senhor Héracles, em tom de súplica, a pedir silêncio com o dedo indicador na frente dos lábios e a outra mão acenando para falar mais baixo.
− Mas o que significa isso, senhor Héracles? Quem escreveu isso em meu quepe? Gululupa?
− Não pronuncie essa palavra, senhor Oswaldinho! – pedia o senhor Héracles, suplicando para que o mancebo falasse um pouco mais baixo.
− Não pronuncie esse nome infame! Venha aqui comigo! Por favor, venha comigo!
Os demais rapazes, colegas de Oswaldo e cúmplices no trote, olhavam a cena de longe, com frouxos de riso. Seguiram ambos, Héracles e Oswaldo, para o banheiro masculino.
− Vamos lavar o seu quepe, senhor Oswaldo! – disse o senhor Héracles, algo desesperado. – Tiremos dele este nome pavoroso!
E tomou o quepe das mãos de Oswaldo, pondo-se a lavá-lo de maneira frenética, esfregando-o com sabão debaixo da água corrente.
Oswaldo, com muito custo, segurava o riso, que teimava em lançar-se da garganta, explodindo pela boca.
− Não pronuncie este nome em nenhuma hipótese, senhor Oswaldo! É por demais repulsivo, condenável! – insistia o escandalizado inspetor, falando em voz baixa, buscando abafar o som das palavras. E prosseguia a nervosa lavagem, lutando contra o gululupa que, indelével, teimava em permanecer com eles.