CIDADE DO MÉXICO E BOGOTÁ. Quando a barriga de sua filha começou a crescer, em maio, Paloma descobriu o inimaginável. A menina de 11 anos tinha sido abusada sexualmente pelo padrasto. Paloma, cujo nome foi modificado para esta reportagem, levou a filha a um hospital público no estado de Michoacan, no oeste do México, mas o aborto foi negado. Por lei, os hospitais públicos mexicanos têm de realizar abortos para sobreviventes de estupros - e também quando a saúde da mulher está em risco e, em alguns casos, quando o feto está deformado, mas, na prática, muitos hospitais se recusam a fazer o procedimento.
No ano passado, um total de 470 abortos legais foram realizados no sistema público de saúde mexicano, um país de 126 milhões de pessoas, de acordo com dados do Ministério da Saúde local. Por toda a América Latina, fazer um aborto costuma ser difícil, mas é ainda mais durante o período de isolamento social necessário para conter a pandemia de Covid-19, dizem especialistas. Juntos, a América Latina e o Caribe têm mais de 4,3 milhões de casos do novo coronavírus.
Especialistas alertam para um aumento no número de gravidezes de adolescentes já que o acesso ao aborto e aos métodos contraceptivos ficam mais restritos devido à concentração de recursos nos esforços para combater a Covid-19 - mesmo que a maioria dos país latino-americanos permita, por lei, a realização do procedimento em casos de estupro.
- Infelizmente, ainda há muita ignorância da população e dos serviços de saúde sobre a lei - diz Karla Berdichevsky, que dirige o Centro Nacional para Equidade de Gênero e Saúde Reprodutiva, veiculado ao Ministério da Saúde mexicano.
Para a menina de 11 anos grávida, a organização sem fins lucrativos Las Libres, que trabalha pelos direitos das mulheres, conseguiu que ela realizasse o procedimento em uma clínica particular na Cidade do México, em junho, quando a gravidez tinha 17 semanas.
- As meninas não têm nenhum poder - diz Veronica Cruz, fundadora da Las Libres. - São exatamente elas que precisam de mais acesso, mais orientação, mais de tudo do estado e, não, o que acontece é o oposto.
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Em toda a região, as adolescentes têm dificuldade de conseguir contraceptivos, que é distribuído gratuitamente pelo governo ou organizações não governamentais. Na Colômbia, por exemplo, menos de um terço das meninas entre 15 e 19 anos relatou usar contraceptivos em um país em que cerca de uma em cada cinco adolescentes é mãe ou está grávida.
- Temos muitas necessidades que não são atendidas em termos de planejamento familiar. Mas isso se agrava com a pandemia - diz Alma Virginia Camacho-Hubner, conselheira regional sobre saúde sexual e reprodutiva do Fundo de População da ONU (UNFPA).
O governo do México calcula que poderá haver cerca de 22 mil gravidezes indesejadas além do normal entre meninas de 15 e 19 anos apenas em 2020, por causa da acesso difícil aos métodos contraceptivos. Por toda a América Latina, 18 milhões de mulheres e adolescentes poderão deixar de usar contraceptivos durante a pandemia, o que poderá levar a mais de 600 mil gravidezes indesejadas, diz uma estimativa do UNFPA.
Abuso sexual dentro de casa
Antes do novo coronavírus, a América Latina e o Caribe registraram o segundo número mais alto de gravidez na adolescência, só perdendo para a África subsaariana, de acordo com o UNFPA. Entre 2010 e 2015, em toda a região, foram 66,5 nascimentos por 1.000 meninas. O número global é de 46 nascimentos por 1.000 meninas.
O número alto de gravidez entre adolescentes na América Latina se deve a falta de controle de natalidade, violência sexual e falta de educação sobre os direitos das meninas e das mulheres. Uma das causas das gravidezes entre adolescentes é o abuso sexual cometido dentro de casa, por parentes. O isolamento social e o consequente fechamento das escolas significam que meninas estão trancadas em casa com seus abusadores.
- As casas não são lugares seguros agora, e meninas e mulheres estão trancadas com seus abusadores - afirma Daniel Molinda especialista em gênero e masculinidades na organização Plan International.
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Relatos de violência sexual durante o isolamento social aumentaram embora não existam dados que mostrem quantos resultaram em gravidez. Em muitos países, serviços telefônicos criados pelos governos foram inundados de chamadas relatando violência sexual. Apenas no Peru foram 17 mil chamadas sobre violência sexual contra crianças nos primeiros 107 dias de isolamento.
Na Colômbia, cerca de 22 casos de abuso sexual contra meninas foram denunciados por dia do início do isolamente , em 25 de março, até 23 de junho. Uma pesquisa online realizada pela Plan International, conduzida em junho com 350 meninas de 12 países, incluindo cinco nações latino-americanas, mostrou que a maioria delas estava preocupada com violência de gênero durante a pandemia. Havia também medo de que a pobreza resultante da pandemia pudesse significar que meninas estão mais vulneráveis a um casamento não desejado ou a ter de viver com um homem porque suas famílias já não podem mais prover seu sustento.
Na região, um adicional de 50 milhões de pessoas entrará para a pobreza ou pobreza extrema por conta do impacto econômico da pandemia, segundo uma estimativa da ONU.
- As meninas estão vendo o casamento precoce como uma saída para a pobreza. Mas quando elas chegam lá, elas entendem que é um outro espaçode abuso - encerra Daniel Molina.