Chamar Gisella Amaral de socialite é pouco, muito pouco. Uma das maiores articuladoras e empreendedoras filantrópicas do Rio de Janeiro, era uma monumental estrategista na difícil arte de fazer com que quem tinha muito dividisse com quem tinha pouco. Durante toda sua vida, dedicou-se incansavelmente a angariar fundos para entidades de assistência a idosos, crianças, deficientes, mães solteiras, igrejas, ambulatórios, a lista é imensa. Num dado momento, não muito tempo atrás, chegou a atender 39 instituições ao mesmo tempo, à frente do movimento que criou, o SorRio. A quem lhe indagava como poderia contribuir, ela tirava da manga seus três “B”s: “de bolso, para quem pode fazer doações financeiras; de braço, para quem está disposto a trabalhar nos meus eventos beneficentes; e de boca, para levar uma palavra de conforto e ânimo aos asilos e orfanatos”. Quando lhe perguntei por que, afinal, ela nunca teve uma entidade para chamar de sua, a resposta foi precisa: “Eu não teria conseguido deixar ninguém de fora”.
Com a irmã mais velha, Sônia (a caçula, Monica, era 19 anos mais nova), Gisella formava na infância a dupla das “meninas do castelinho”. O pai, Alfredo da Rocha Amaral, construiu para mãe das meninas, Vivi, uma pequena réplica de um castelo numa rua sem saída de Copacabana, a General Barbosa Lima. Com 5, 6 anos, Gisella já subia o morro, escondida com a babá, para levar balas e bombons às crianças da favela. “Comia uns dois para enganar, e guardava o resto; ficava revoltada porque elas não tinham as mesmas gostosuras que nós”.
Em março de 1964, numa festa na casa de Maria da Glória Chagas, Gisella, que trabalhava voluntariamente como enfermeira instrumentadora num ambulatório, conheceu o paulista Ricardo Amaral, jornalista e reconhecido boêmio. O papo começou com uma discussão política, os dois em campos adversos, e acabou unindo os opostos — ma non troppo , afinal era o encontro de dois Amarais. Começaram a namorar e se casaram um ano depois, com Gisella passando a assinar Gisella Maria Amaral do Amaral. “Ele nasceu nove meses depois de mim, uma gestação. Digo pretensiosamente que Ricardo foi feito para mim”, disse-me Gisella numa entrevista. “Somos completamente diferentes, mas nos amamos como se fôssemos um para o outro.”
Na época do casamento, Gisella nem sonhava que se tornaria a rainha-consorte da noite carioca. Aos poucos, ao longo dos 30 anos seguintes, Ricardo foi construindo um império de casas noturnas que incluiu ícones como Sucata, Papagaio, Mamão com Açúcar, o lendário Hippopotamus no Rio, em São Paulo e em Salvador, Resumo da Ópera, Banana Café, o Club A, em Nova York, o Le 78, em Paris, além da pizzaria Gattopardo.
Diversas gerações debutaram na pista dança em seus endereços, mas o casal jamais foi visto requebrando o esqueleto. “Era apenas a acompanhante, nunca me meti nos negócios dele. Ficava com os amigos no bar, para evitar que alguém de porre me puxasse para dançar”, contou Gisella. Quando seu grupo ia embora, ela voltava para casa, às vezes fazia ginástica de madrugada, depois tomava uma chuveirada, ia para a cama ler os jornais do dia e esperar Ricardo. E ainda acordava cedo para levar os meninos para a natação e o judô.
De todas as casas de Ricardo, a preferida da mulher foi o Le 78, em Paris. Na inauguração, a polícia francesa teve de jogar gás lacrimogênio para dispersar a multidão que se aglomerava na porta para entrar. Na época, as maisons francesas disputavam a primazia de vestir Gisella para as muitas festas para as quais ela era convidada. Certa vez, numa dessas, ela e Madame Fauchon, dona da delicatessen Fauchon, estavam com o mesmo vestido, na mesmíssima cor. Gisella foi até a concorrente e disse: “A sua roupa você pagou; a minha eu peguei emprestada. Então vamos descer a escadaria de braços dados”. Os fotógrafos, claro, fizeram a festa.
Num outro evento, no Castelo de Versalhes, a maison Dior lhe emprestou uma roupa, que Gisella achou com cara de princesa e Ricardo, de noiva. E não eram mesmo as duas coisas? O modelito seria o vestido do casamento civil da Caroline de Mônaco, que a princesa acabou não usando. Grifes à parte, Gisella dizia que sempre se vestiu com o que achou bonito, e ponto. “Nunca tive fidelidade por costureiro nenhum; só pelo meu Amaral, com quem me casei virgenzinha”. Uma curiosidade: ela cursou brevemente Jornalismo na PUC-Rio e chegou a escrever matérias de saúde para a Vogue Brasil, uma delas sobre os benefícios do coco.
— A Gisella foi uma pessoa fantástica que estava sempre pronta para ajudar os outros. Ao mesmo tempo, tinha uma personalidade boêmia. Ela era companheira para tudo — relembra Katia Vita, que durante mais de uma década foi directrice do Hippopotamus.
Para a comadre e amiga Kiki Garavaglia, uma das qualidade de Gisella era aliar a atividade filantrópica à vida boêmia:
— Era a minha melhor amiga. A gente brigava de colocar <QL>o dedo na cara uma da outra e, dois minutos depois, perguntava: “Vai querer sorvete ou não vai?”. Passamos noitadas juntas, tivemos filhos juntas. Todo o mundo achava que o Ricardo era o boêmio, mas a boêmia era ela. Era capaz de usar uma roupa black-tie às quatro da tarde. “Estou pronta para uma festa”, dizia. Por 40 anos, trabalhamos juntas <QL>na Casa São Luiz para a Velhice; era sempre ela quem ligava para pedir o que fosse necessário.
Na proporção do glamour, surgiram alguns revezes. Aos 16 anos, numa viagem cultural à Itália, Gisella caiu dentro do vulcão Vesúvio e teve de ser resgatada por bombeiros. Mais tarde, já casada com Ricardo, sofreu um acidente de carro que lhe custou um edema cerebral e enxaquecas terríveis durante dois anos. Em 1981, uma queda de cavalo na Bahia a levou ao coma por dez dias, a oito meses inconsciente e um longo processo de recuperação que durou oito anos. Teve que reaprender tudo: objetos, animais, conceitos, apenas reconhecia os filhos, o marido e o pai. Durante um tempo só falava francês, um pouquinho de italiano, e com as plantas, que, como não lhe respondiam, levavam-na aos prantos.
Ricardo, que estava no Hippo na hora do acidente, conseguiu que ela embarcasse num voo internacional vindo da Europa, que, por coincidência, estava trazendo Chico Buarque. O acidente saiu no “Jornal Nacional”, e os fotógrafos já estavam esperando na saída, avisados de que não poderiam disparar os flashes, porque ela não suportaria a luz. “Ninguém deu bola para o Chico, que depois brincou comigo que é uma maravilha viajar com Gisella doente, porque ninguém tira foto”.
O humor com que lembrava essa época duríssima foi também sua ferramenta para enfrentar uma nova batalha. No começo dos anos 2000, Gisella surgiu nos salões da sociedade carioca com a vasta e bela cabeleira completamente raspada. “Estou me recuperando de um câncer”, dizia ela, com todas as letras, antes de nos consolar, passando as mãos nos nossos rostos apreensivos. E perguntava: “Mas por que você está triste?”
— Gisella segurou a doença lindamente, não escondeu nada de ninguém nem ficou se lamentando. Estava sempre para cima — relembra a relações-públicas Tânia Caldas. — Ela era muito bem intencionada, mas não era boba. Tinha uma sabedoria inacreditável.
Gisella, que já havia retirado vários nódulos antes, descobriu a doença na véspera da Páscoa, em exames de rotina, antes de partir para uma viagem aos Estados Unidos. Ela levou os resultados para o Memorial Hospital, em Nova York, onde recebeu o diagnóstico: um tumor maligno na mama esquerda.
A primeira medida depois da notícia foi correr para a Igreja de Saint Patrick. “Olhei para Nossa Senhora e agradeci muito, porque não foram meus filhos nem meu marido que estavam passando por aquilo. Depois, saí para almoçar com uma amiga e passamos um fim de tarde ótimo. Marquei uma consulta e a operação para a segunda-feira seguinte, no Brasil. E descobriram outros três tumores, que os americanos não haviam detectado”.
Para a primeira sessão de quimioterapia, chegou atrasada, pois tinha passado horas a fio no cabeleireiro, onde fez as unhas, uma limpeza de pele e deu um retoque básico no penteado. Quando contou o motivo do atraso a Ricardo, a essa altura aflitíssimo, ouviu dele: “Gisella, você é tão irresponsável, que não tem medo nem de quatro tumores”.
Todas essas anedotas eram contadas como se tudo se tratasse de uma simples cirurgia de canal — Gisella acabou criando um novo paradigma no enfrentamento da doença. Abriu mão de turbantes e perucas, e incrementou ainda mais os acessórios e as bijuterias — nunca usou joias, “em respeito aos pobres”, segundo ela. “Fora um anel de Nossa Senhora, um crucifixo de São Bento, minha aliança e uma obturaçãozinha de ouro”. No máximo, quando os cabelos voltaram, ralinhos, comprou um aplique de uma índia velha americana em Nova York, “para fazer charme”.
Sempre listada entre as mais elegantes do Brasil, consagrou-se, depois do câncer, como ícone da moda, a bordo de seus looks monocromáticos e lenços amarrados no corpo à moda oriental. Aos 75 anos, topou posar para a campanha da grife de roupas Eva, de olho no cachê que seria revertido para suas entidades. Um dia, sugeri a ela que abrisse uma conta no Instagram, para divulgar suas ações, ao que ela respondeu: “Se a sua mão estiver ocupada com o celular, é uma a menos para ajudar a quem precisa”.
Durante oito anos, ministrou palestras no Brasil todo sobre sua experiência e se engajou em campanhas de prevenção. Quando a doença voltou, na forma de vários tumores, os quais chamava “inquilinozinhos”, não perdeu o ânimo. Pouco antes de morrer, estava num restaurante no Leblon erguendo um brinde à vida. “Aos médicos cabe prescrever tratamentos, remédios, operações, exames. A nós, levantar o espírito”, ensinava. “Lutei com alegria, uma palavra que está escrita na Bíblia mais de três mil vezes”.
— Tive um encontro marcante com Gisella, em 2009. Num desfile realizado no Copa, sentei-me ao lado dela. De repente, ela me convidou para ir a uma missa no Mosteiro de São Bento — conta Andréa Natal, diretora-geral do Copacabana Palace. — Disse a ela que adoraria ir e levar a minha mãe, que tinha tido um câncer. Ela indicou seu oncologista e nos passou o contato dele. Tempos depois, quem precisou do médico fui eu. Durante todo o meu tratamento, ela me mandou presentes, um colar, uma rosa branca, uma caixa de costura.
Católica fervorosíssima, grande arrecadadora para o Banco da Previdência, contava que, quando pequena, tinha visões e acordava com pressentimentos, “até de mortes e coisas maravilhosas”. Aliás, ela foi uma das primeiras adeptas no Rio da meditação transcendental, que ajudou a popularizar.
— Credito grande parte do meu pequeno sucesso a Gisella, que foi minha madrinha, me inseriu na sociedade carioca e também me apresentou a nomes internacionais, como o cineasta David Lynch — diz Klebér Tani, maior nome da prática no Rio. — Ela começou a praticar meditação há 20 anos. Acreditava na vida em todos os sentidos, tanto dentro do planeta Terra como em outro patamar. Quem conheceu Gisella ganhou um prêmio na vida.
Só não digam aquela frase-clichê “Gisella descansou”, porque descansar era tudo que ela detestava — não por acaso, Ricardo a chamava “Duracell”. Enquanto recebia a extrema-unção no hospital, fazia planos com a amiga Clara Magalhães, que cantaria no dia seguinte no seu velório. Prefiro imaginar Gisella atribuladíssima, em sua “viagem de expansão, de volta para casa”, como certa vez ela definiu a morte. Olhando para trás, fico pensando: como conseguia estar em todos os lugares, à moda dos anjos: aniversários, galas, Paris, favelas, o restaurante da hora, à cabeceira da amiga doente e do mais perfeito incógnito que precisava de uma doação de cadeira de rodas para deixar o hospital, tudo num dia só? Os atrasos eram épicos, à exceção de missas e enterros, mas, durante anos, desconfiei de que houvesse várias Gisellas, uns clones espalhados por aí.