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"A educação não se dá só no contexto escolar. Precisamos conscientizar os homens, para que entendam que a cultura machista traz prejuízos para eles também. Eles precisam entender que essas masculinidades hegemônicas são tóxicas e destrutivas"
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Nascer mulher, negra, pobre e de periferia, no início dos anos 1970, significava, para muitas, ter de trabalhar desde cedo para ajudar na renda familiar. A consequência disso era, na maioria das vezes, abandonar os estudos, casar-se. Nadar contra a corrente não era tarefa fácil, mas assim fez Gina Vieira Ponte, 48 anos, idealizadora do projeto Mulheres Inspiradoras. O Correio inicia hoje, com a história dessa mulher inspiradora, a série de reportagens Elas vão à luta.
Graças à mãe, determinada em garantir uma educação para todos os seis filhos, Gina estudou e formou-se como professora. Ir para as aulas com sapatos furados, roupas puídas e até mesmo de estômago vazio não a impediu, mas um obstáculo maior era motivo de desânimo: o racismo. “Eu esperava que a escola fosse um lugar libertador. Desde sempre, soube que me traria conhecimento, mas também foi um espaço onde eu sofreria violência, xingamentos e até o abuso de professores”, lembra.
Criança, ela se viu buscando a invisibilidade, para que não chamasse a atenção. No entanto, uma professora, também negra, a notou. “Ela me percebeu e estava decidida que eu aprendesse. Com ela, ressignifiquei a minha percepção de mim mesma, me reconstruí e decidi, aos 8 anos, que seria professora”, afirma. “Queria proporcionar para outras crianças a experiência transformadora que aquela mulher tinha me oferecido.”
Os primeiros alunos foram três irmãos mais novos. Sozinha, Gina alfabetizou todos. Aos 17 anos, concluiu o ensino médio, na Escola Normal, e prestou concurso para a rede de educação, dando início à carreira aos 19. Em 2003, viveu um baque profissional, quando começou a dar aulas na mesma escola de Ceilândia onde havia estudado, 11 anos antes. A turma de adolescentes deu as costas à professora. “Minha primeira reação foi de desespero. Depois, veio a sensação de angústia e fracasso. Sentia que não estava cumprindo o meu papel.”
Em lugar de lamentar, no entanto, Gina buscou especializar-se, estudando na Universidade de Brasília (UnB), e percebeu que era hora de questionar a própria instituição. Ela passou a ouvir os alunos e a entender o universo deles. “Entrei nas redes sociais como ferramenta pedagógica para conversar com eles, saber o que acessavam e do que gostavam.”
A estratégia ajudou, mas fez com que, um dia, a professora se deparasse com o vídeo de uma aluna negra, de 13 anos, que a chocou. “Ela dançava uma música erótica, usando uma roupa que expunha o corpo. A letra era profundamente desqualificadora às mulheres”, detalha. “Aquilo me incomodou, porque as imagens poderiam fazer com que ela fosse interpelada por um pedófilo. Mas eu sabia que, se fosse conversar com ela, poderia ser censurada. Fui tentar entender melhor e vi que a sociedade apresenta aos jovens, modelos de mulheres padrão, sempre objetificadas.”
Esse foi o pontapé para que, em 2014, nascesse o projeto Mulheres Inspiradoras (leia Para saber mais). “Não se via falar em pesquisadoras, cientistas, estudiosas. Eram sempre corpos reduzidos para o consumo”, critica. “Selecionei 10 biografias diferentes para, nessa perspectiva, dizer que todas nós podemos ser protagonistas das nossas histórias e deixar de lado a representação hegemônica que só celebra o corpo magro e branco a serviço dos interesses do patriarcado.”
Feminismo
“O feminismo clássico, acadêmico, resultado de pesquisas teóricas, chegou muito tarde para mim”, assume Gina. Nem por isso, deixou de vir, mas de outra forma. Primeiro, na prática, por meio de dona Djanira. “Minha mãe me fez acreditar que a educação era o caminho para a minha liberdade como menina e como mulher.” À matriarca, Gina atribui o título de mulher mais inspiradora da vida. “O projeto é uma grande declaração de amor pela mulher extraordinária que ela foi e pelo que fez para que eu pudesse ter a trajetória que tive. É uma grande homenagem a ela.”
Defensora da igualdade de gênero, a professora acredita que houve avanços no tema, embora poucos. “Devemos ser muito gratos ao movimento de mulheres. Se hoje a gente tem apontamentos para que os sistemas sejam trabalhados, isso se dá graças à pressão dos movimentos sociais”, ressalta. “Mas se a gente olhar para a quantidade de mulheres que ainda sofrem violência, para mim, isso é um indicador de que estamos muito atrasados.”
Ela destaca a importância de orientação não só para vítimas, mas para agressores também. “A educação não se dá só no contexto escolar. Precisamos conscientizar os homens, para que entendam que a cultura machista traz prejuízos para eles também. Eles precisam entender que essas masculinidades hegemônicas são tóxicas e destrutivas”, declara Gina, que acredita que não há o que se comemorar. “Na atual conjuntura política, menos ainda. Hoje, enxergo muito retrocesso.”
A luta continua
Para o futuro, uma coisa é certa: o trabalho segue. O objetivo de Gina é agregar cada vez mais professores ao Mulheres Inspiradoras, que hoje está também presente em Campo Grande. “Já é mais do que um projeto. É uma concepção de mundo que eu quero que chegue a todas as pessoas, dizendo que nenhuma mulher e menina pode ser violada. É lutar por um mundo mais justo para todos nós.”
Enquanto isso, o trabalho é acompanhado de perto por um jovem menino, que, aos 9 anos, já aprende os conceitos de igualdade. Luís Guilherme, filho de Gina, é o maior presente. “Ele acompanha tudo. Quis a vida que eu tivesse um menino e está sendo desafiador. O projeto nasceu depois dele, não por acaso. Ele me fez olhar para o mundo de outra maneira e pensar no que meu filho vai encontrar e como posso colaborar para que seja mais justo, digno e bonito.”
Para saber mais
Inspiração para a vida
O projeto, iniciado em 2014, leva para a sala de aula, histórias de mulheres que fizeram história. Os alunos descobrem as biografias de personalidades como Cora Coralina, leem livros como Eu sou Malala e O diário de Anne Frank. Além disso, escolhem, no fim, uma mulher inspiradora da vida deles. O trabalho está em 41 escolas do DF, e já chegou também a Campo Grande.