Gilberto Gil está isolado há sete semanas na casa da família em Araras, no Rio. O compositor, de 77 anos, estava na Dinamarca quando a pandemia começou, em março. Encerraria por lá a turnê do disco, "Ok ok ok", mas o show foi cancelado. Voltou, então para o Rio, subiu a serra fluminense dois dias depois e de lá não saiu mais.
Pela internet, ele também lança amanhã, junto com o BaianaSystem, o disco “Gil Baiana Ao Vivo Em Salvador”.
Registro do show que marcou um encontro de gerações, em novembro de 2019, o álbum mistura um repertório de clássicos de Gil (“Extra” e “Emoriô”) e do Baiana (“Água” e “Dia da Caça”).
— O BaianaSystem é a Bahia viva, né? É uma honra estar associado a um grupo contemporâneo dessa qualidade — diz o músico.
Nesta conversa por email, ele, que sempre refletiu sobre os mistérios que hão de pintar por aí em sua obra, conta o que anda passando pela sua cabeça nesses tempos estranhos.
Como tem sido o seu dia a dia, o isolamento é difícil para você? Do que mais tem sentido falta?
Acompanho os noticiários na TV, atualizo a correspondência no e-mail e no WhatsApp, faço alguma ginástica, tomo um pouco de sol, quando ele aparece, leio livros, toco violão, gravo músicas e entrevistas “live" atendendo às solicitações que vão aparecendo, faço as três refeições, tomo meus remédios e durmo, de sete a oito horas por noite. Adoro os papos com a família sobre tudo que nos aflige ou nos conforta.
Viveu algum momento especial neste tempo. O dueto com Flor em "Volare" foi um deles, não?
Sim, foi muito especial cantar e gravar “Volare”, a pedido da Itália, com a Flor que esteve em quarentena conosco por cinco semanas. Ela já voltou com os pais para São Paulo. Também adorei cortar os cabelos do meu neto Dom que queria um corte à la Ronaldo na Copa de 2002. Ele gostou. Ficou legal.
Preta Gil foi uma das primeiras a contrair Covid-19 no Brasil. Ela contou que sua voz dizendo que ficaria tudo bem a acalmava. Tinha mesmo esse certeza, teve medo de a situação dela se agravar?
A posição da medicina, que considerava a doença menos severa para os mais jovens, me dava confiança quanto à capacidade de ela se recuperar sem maiores problemas. Foi o que aconteceu. Agora ela vai mantendo o isolamento e se fortalecendo para voltar ao trabalho, quando for possível.
O que está lendo e ouvindo?
Estou lendo “Armas, germes e aço”, livro do Jared Diamond que me presentearam um tempo atrás e que ainda não havia lido. Também estou lendo “Biocentrism”, do Robert Lanza com Bob Berman, que minha filha Bela me trouxe quando veio passar uns dias conosco. Acesso muitos sites de ciência para ler sobre a pandemia e outos assuntos que me interessam. Não tenho escutado nada em especial.
Em "Lunik 9", você cantou: "Poetas, seresteiros, namorados, correi/ é chegada a hora de escrever e cantar/ talvez as derradeiras noites de luar/ momento histórico, simples resultado do desenvolvimento da ciência viva", sobre a chegada do homem à Lua. Estamos vivendo outro momento histórico. É chegada a hora de escrever e cantar? Está inspirado, compondo algo novo?
Sem dúvida, estamos vivendo um momento que vai ficar na História como marcante e transformador. Já é muito grande o número de ensaios e artigos de cientistas e de representantes de todos os campos do conhecimento, dando conta de tantas novas interrogações suscitadas pelo coronavírus e tudo que ele trouxe. As manifestações artísticas virão em seguida. Eu ainda não senti nenhum impulso em direção a compor e traduzir em canções o suspense do momento. Tenho cantado sempre a canção “Por um triz” ("sou feliz por um triz/ por um triz sou feliz/ mal escapo à fome/ mal escapo aos tiros/ mal escapo aos homens/ mal escapo ao vírus/ passam raspando/ tirando até meu verniz"), de que me lembrei quando o vírus apareceu. É um rock pesado que gravei com meu filho Pedro à bateria, para o disco "Raça Humana".
Em sua obra, você sempre refletiu sobre os mistérios da vida, sobre a morte. Como percebe o atual momento e como tem se sentido diante dele?
A princípio, muito comovido. Em seguida, muito interessado em acompanhar a marcha devastadora da pandemia e em buscar a proteção pessoal e da família. Agora que a ciência e a medicina intensificam sua corrida atrás do vírus, eu vou tentando acompanhar, com a maior atenção, as buscas pelas vacinas e pelos remédios, a adaptação das atividades produtivas às novas exigências, as transformações nas formas de convívio e as novas disposições do amor e do afeto. É muita coisa. Em meio a tudo isso, é claro, um pouco de medo e pesar. Temeroso, um pouco, com a intensificação e sofisticação das ferramentas de vigilância e controle que podem estimular um certo fascismo sistêmico que ronda boa parte do mundo.
Vivemos dias que parecem refletir mesmo muitas de suas canções. Como em "Tempo rei", acha que essa pandemia "transformará as velhas formas do viver"?
Um pouco. Na medida do inevitável. Vários impulsos nos usos das tecnologias, no desenvolvimento da saúde e da educação, do urbanismo, da ecologia, na economia política, no papel do estado. E tantos outros impactos ainda por sentir e vislumbrar.
Na sua visão, estamos mais para um recomeço ou para o fim do mundo?
Se vamos recomeçar, deixaremos para trás muito do que temos sido até aqui. Ao assumirmos um novo mundo, estaremos nos encaminhando, de novo, para um novo fim. E assim por diante de si mesmo, ad infinitum.
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O atual surto de compaixão e solidariedade e compaixão de hoje vão refletir no amanhã? Vamos sair melhor dessa?
É razoável considerar que estamos sempre melhorando em algum aspecto e piorando num outro. Tanto o positivo quanto o negativo vão deixando os seus resíduos. Simultaneamente.
Como faço para falar com Deus?
Eu tenho percebido que todas as representações do mundo, através das palavras e das linguagens, dos números e das medidas, das ideias e dos conceitos, dos sentidos e do silêncio, é o tudo e o nada que se dá no campo da consciência.Tudo que se dá no plano da vida, que é uma reiteração permanente dessa consciência. Não tenho como escapar da consciência e é nela que se dá o tudo/nada que poderíamos chamar de Deus. Ao viver, portanto, vivo Deus. Falar com Deus é estar vivo. Falo com ele o tempo todo através das várias formas de diálogo com o mundo via consciência.
O melhor lugar do mundo tem que ser sempre aqui e agora? Pecisamos aprender a parar de projetar o futuro e viver o presente com atenção plena?
Lugar é sempre aqui, tempo é sempre agora. Atenção plena é plena consciência. E até mesmo a projeção se passa nesse aqui/agora. Dentro dessa consciência.
Nessa quarentena, perdemos Moraes Moreira, Rubem Fonseca, Garcia-Roza em meio a um silêncio do atual governo. O que acha disso?
O governo está absorvido pela Covid e suas mortes anônimas. A secretaria da Cultura que, em tese, seria o setor encarregado de lembrar dessas mortes de figuras públicas de relevo cultural acima referidas, está com suas operações prejudicadas pelo pandemônio da pandemia.
Vivemos um momento de transformação também na relação entre público e artistas. A cultura também terá que passar por uma reinvenção pós-pandemia? Em que direção?
Novas direções para essas reinvenções podem ser as mais variadas possíveis. Desde o fortalecimento desses novos sistemas de interação com os públicos (os shows domésticos, a disponibilização via internet de arquivos e acervos de museus, teatros, bibliotecas, televisões e tanta coisa mais), até a volta gradual aos modos convencionais de interação, a medida que forem caindo os isolamentos, as quarentenas, os lock-downs. É difícil apontar com segurança como vai ficar esse novo mundo que vem por aí.
Está se cuidando? Porque precisamos muito de você….
Ok, Ok, Ok… Vou indo em frente. Cuidando da saúde e tudo mais.
Você tem medo de morrer?
Tenho. Como todo mundo. Nas minhas orações, a única coisa que peço à vida é a boa morte. De resto, a vida tem me dado o que preciso para tocá-la adiante 0 não me esquecendo da primeira sentença das escrituras védicas: “Tudo é sofrimento”.