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O fotojornalista na Praça dos Três Poderes, em frente ao STF: ele, que registrou a construção de Brasília, teve o tribunal como último local de trabalho
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O Brasil perdeu ontem um dos seus maiores fotojornalistas. Autor de algumas das mais famosas imagens de presidentes brasileiros, o baiano Gervásio Baptista morreu aos 96 anos, de causa naturais, em uma casa de repouso de Vicente Pires, onde morava desde 2015. Deixou registros históricos, família e uma legião de discípulos, admiradores e amigos.
Natural de Salvador, Gervásio clicou de Getúlio Vargas a Luiz Inácio Lula da Silva, sete copas do Mundo e 16 concursos Miss Universo, nos tempos áureos do evento. Cobriu a Revolução dos Cravos, em Portugal, em abril de 1974; a queda do presidente argentino Juan Domingo Perón (1955); e a Guerra do Vietnã (1955-1975).
Entre as icônicas fotos de Gervásio está a de Juscelino Kubitschek acenando com a cartola na inauguração de Brasília, capa da extinta Manchete, com os anexos do Congresso Nacional ao fundo. Outra imagem histórica é de Tancredo Neves ao lado da mulher, dona Risoleta, e da equipe médica, no Hospital de Base. A última imagem pública de Tancredo vivo.
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Gervásio no Vietnã, durante cobertura da guerra no país asiático
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PrecocidadeOs políticos não têm consenso sobre o início da carreira de Gervásio. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso costumava dizer que foi nos tempos de dom Pedro I. Quando FHC fez tal comentário na presença do ex-ministro Pratini de Moraes, Gervásio elogiou a “memória prodigiosa” do então presidente da República. O ex-senador Antônio Carlos Magalhães afirmava que o profissional fotografou a Santa Ceia. “E o senhor era o meu repórter”, rebatia Gervásio, sempre que estava presente. Além de baianos, ambos eram contemporâneos, como o fotógrafo lembrava a ACM.
Quando criança, Gervásio brincava com caixas de fósforo como se fossem câmeras fotográficas. Abria e rabiscava o que via dentro. Ao completar 9 anos, o pai sugeriu a ele, no tempo das férias, trabalhar no laboratório de um amigo, em Salvador, onde moravam. No Foto Jonas, o menino, então filho único, aprendeu, em um mês, todo o processo químico da revelação e da cópia em papel.
As portas do fotojornalismo se abriram quando apareceu no estúdio o político Rui Santos. Ele pediu uma foto 3x4. Como todos os “retratistas” estavam ausentes, Gervásio se ofereceu para atendê-lo. Muito pequeno para fazer o registro do cliente, ele subiu em uma cadeira para alcançar o visor da câmera. “Tirei a foto e corri para o laboratório. Ele (Santos) olhou para mim e disse que eu era um danado. Perguntou-me se queria trabalhar no jornal Estado da Bahia”, contou Gervásio, em entrevista ao Correio.
No dia seguinte, aos 12 anos, Gervásio estreou como fotógrafo-assistente no periódico soteropolitano. Dono da publicação e dos Diários Associados, Assis Chateaubriand logo enxergou o talento no menino. A convite do patrão, em 1950, ele se mudou para o Rio de Janeiro, a fim de trabalhar em O Cruzeiro.
As fotos mexeram com a maior concorrente da revista dos Associados, a Manchete, a ponto de Adolpho Bloch, proprietário da publicação carioca, contratá-lo para o primeiro número, em 1952.
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Tancredo entre dona Risoleta e a equipe médica: última imagem do presidente vivo
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Vida e mortePela Manchete, ele registrou, semana a semana, a construção de Brasília. E, dessa cobertura, o mais emblemático registro é o de JK com a cartola. Assim como ela, as fotos feitas por Gervásio no funeral de Getúlio Vargas, em São Borja (RS), em 26 de agosto de 1954, também circularam mundo afora. No Brasil, até provocou um número especial da Manchete.
Discreto em relação aos segredos da vida profissional, principalmente no que diz respeito à intimidade dos presidentes que acompanhou em cerimônias e viagens pelo Brasil e pelo mundo, Gervásio não poupava Jânio Quadros. “A Manchete queria uma foto especial de Jânio. Ficamos quatro horas no estúdio. A minha intenção, com as técnicas de iluminação, era disfarçar os olhos vesgos dele. O (Adolpho) Bloch apareceu e perguntou como estava a sessão. ‘Um saco. Esse fotógrafo é um ditador. Só de me dá ordens’, reclamou Jânio. Soltei uma piada: ‘Presidente, quem mandou vossa excelência ter os olhos tortos?’ Jânio retrucou na mesma hora: ‘Viu? Ainda por cima é atrevido’. Enfim, saiu a foto. Consegui nivelar os olhos dele”, recordou, com uma risada sutil, em entrevista ao Correio.
Gervásio também fez importantes registros de líderes mundiais, como o cubano Fidel Castro, em 1960. “O meu primeiro encontro com Fidel foi em 1960, no primeiro aniversário da Revolução Cubana. Nós nos reencontramos anos depois na sede da ONU, em Nova York. Eu estava lá como fotógrafo oficial da Presidência da República, para fazer as fotos de José Sarney. Para minha surpresa, depois de 25 anos, Fidel ainda se lembrava de mim. Ao me ver, ele afirmou: ‘Yo lo conozco’”, contou o fotógrafo.
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Pedido ao presidente JK para acenar com a cartola: dois cliques e uma imagem icônica
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Ditadura e prisõesA profissão e as viagens para países comunistas lhe renderam problemas com os militares brasileiros. Durante a ditadura, Gervásio acumulou passagens pela prisão. Mas, por não ter engajamento político, sempre foi libertado rapidamente e sem maiores consequências. Com o fim do regime, ele recebeu o convite para se tornar fotógrafo oficial da Presidência da República. Mas aquele que seria o seu chefe, Tancredo Neves, não tomou posse.
A internação repentina do primeiro presidente civil (eleito pelo Congresso Nacional) após décadas levou centenas de jornalistas a fazer plantão na porta do Hospital de Base, em março de 1985. Em uma tentativa de acabar com boatos da morte de Tancredo, o chamaram para fazer uma foto exclusiva dele ao lado da equipe médica.
Gervásio trabalhou para José Sarney e depois, por anos, fez jornada dupla, trabalhando de manhã na Radiobrás e à tarde no Supremo Tribunal Federal (STF). Nesse período, só chegava em casa depois das 22h. Ele dividia o apartamento da 105 Norte com a mulher, os dois filhos e os dois netos. A rotina da família começou a mudar em 2014, com a morte da carioca Ivonete, com quem Gervásio viveu casado por quatro décadas.
Dinheiro e famaConsiderado uma referência na profissão, Gervásio nunca se gabou da fama. Aliás, sempre fez questão de negá-la. “Todos a quem fotografei eram mais importantes do que eu. Nunca fui famoso, nunca fui rico e nunca fotografei por dinheiro. Quem faz isso não é um bom fotógrafo. No jornalismo, só ganhei bons amigos”, ressaltou, ao Correio. Para ele, fotografar está relacionada às emoções. Um bom fotógrafo, ensina, tem que conhecer as técnicas dessa arte, o equipamento e, acima de tudo, ter sensibilidade. “Clico tudo o que me aguça o sentimento.”
O desapego com dinheiro levou Gervásio a uma aposentadoria mirrada, com nenhum luxo. Ele nunca recebeu um centavo pelos direitos autorais da sua obra. Sequer ficou com cópias das principais fotos. Mas não se chateava. Dizia ter aproveitado tudo que a carreira profissional lhe proporcionou, sem falar em saudades. “Saudosismo não leva ninguém ao céu. A bondade, sim”, pregava.
Perguntado sobre se ressentia por não ter feito alguma imagem, ele só lembrava de uma: “Queria ter fotografado o Mao vivo”. Ele se referia a Mao Tsé-Tung, líder da Revolução Chinesa, arquiteto e fundador da República Popular da China, presidente do país desde a sua criação, em 1949, até a sua morte, em 1976. Em tempo: Gervásio não clicou Mao vivo, mas cobriu as homenagens póstumas e o enterro dele, na China.
Das mais fortes emoções da vida, Gervásio citava o encontro com o ídolo na fotografia: o francês Henri Cartier-Bresson. “A gente se conheceu quando eu fui a Paris fazer um curso de 15 dias em um laboratório. Ele é o papa do fotojornalismo.” Esse foi um dos poucos cursos de Gervásio, que apenas concluiu o ensino fundamental, mas é considerado decano da profissão pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI).
Nascido em Salvador, em 1º de junho de 1922, Gervásio fazia planos de sair do abrigo e voltar a fotografar. Católico apostólico baiano, como se apresentava, rezava bastante. Também procurava saber dos resultados dos jogos do seu Botafogo. Uma das suas últimas aparições pública foi em janeiro, na inauguração de uma exposição fotográfica que retratou a trajetória profissional dele. “O grande legado deste brilhante profissional permanecerá vivo. Ele é dono do acervo mais rico da história do país e, uma figura que o Brasil não pode esquecer”, destacou Ivaldo Cavalcante, curador da exposição, realizada na Galeria Olho de Águia, em Taguatinga.
Deixando três filho, Gervásio deverá ter o corpo cremado. No entanto, até a noite de ontem, a família não havia decidido hora nem local do velório.
"Todos a quem fotografei eram mais importantes do que eu.
Nunca fui famoso, nunca fui rico e nunca fotografei por dinheiro.
Quem faz isso não é um bom fotógrafo. No jornalismo, só ganhei bons amigos.”
Gervásio Baptista, fotojornalista