13 de março de 2022 | 05h00
‘Foi uma batalha’, conta Andrés Espinoza, de 53 anos, dono de uma voz serena, sobre a criação e manutenção de uma escolinha de futsal em São Paulo para crianças e adolescentes bolivianas ou cujos pais vieram do país andino. A Nueva Generación Boliviana, ou Nova Geração Boliviana em português, cujo símbolo carrega o vermelho, o verde e o amarelo da bandeira do país, ministra aulas para 150 alunas em quadras nos bairros Jardim Brasil, Jardim Japão e, mais recentemente, Penha.
Nascido na Bolívia, Espinoza veio ao Brasil há quase 30 anos, sem conhecer ninguém, em busca de trabalho e começou atuando no ramo da confecção sem ter qualquer conhecimento na área. “No início, cheguei a ficar desesperado para voltar à Bolívia. Não consegui me acostumar. Eu calculei que eu teria que trabalhar três a quatro meses para juntar dinheiro e voltar ao meu país”, explica.
Como adorava jogar bola e praticar exercícios físicos, foi no Parque Piqueri, no Tatuapé, que achou um local adequado para fazer o que gostava. Lá, ficou surpreso e feliz de encontrar um grupo de bolivianos, algo raro no início da década de 1990, segundo Espinoza. Logo fez amizade e ouviu dos novos amigos que os salários na Argentina estavam melhores. Resolveu ir para o país vizinho e ficou lá um ano até a crise bater à porta.
Sem saber para onde ir, mandou uma carta para a pessoa que tomava conta de seus pertences em São Paulo. Quando soube da paridade do real com o dólar em 1994, se animou e decidiu retornar ao Brasil. “Eu comecei a trabalhar, o tempo foi passando e eu fui me acostumando”. Enquanto se adaptava ao novo país, cresceu no ramo da confecção e passou a tocar sua própria oficina de costura. Vendia o que produzia na Feirinha da Madrugada, tempos que lembra com carinho pelas boas vendas. "Naquela época, eu consegui fazer minhas economias”.
Com o passar dos anos, trocou de área. Em 2012, passou a trabalhar no ramo da informática após fazer um curso técnico. Mas uma nova função estava para aparecer na sua vida.
Em 2015, recebeu um convite para uma partida entre membros da comunidade boliviana e a seleção da Confederação Nacional de Futebol de Salão (CNFS), entidade que organiza o futebol de salão na modalidade FIFUSA/AMF. A vaga era de técnico, função que ele nunca havia exercido e nem tinha experiência. Mas como o time boliviano não contava com nenhum profissional e ele era conhecido na comunidade por sua ligação com o futebol, aceitou o convite.
Espinoza já era alguém conhecido entre muitos bolivianos que frequentavam a Praça Kantuta, no Canindé, local que, aos domingos, a cultura do país é celebrada, com comidas e costumes. Fã de futebol, ele chegou a atuar na segunda divisão boliviana e lembra com carinho de ter assistido a uma rara vitória de seu país sobre a seleção brasileira na década de 1970.
A partida foi vencida pelo time brasileiro e uma revanche foi marcada. As atletas bolivianas, todas amadoras, queriam treinar mais para fazer bonito na segunda partida. Mas, pouco a pouco, menos jogadoras apareciam para treinar e a partida foi cancelada.
No mesmo ano, a cidade de Santos sediou o Campeonato Sul-Americano de Futebol Feminino sub-20 e Espinoza ficou encarregado de cobrir a seleção boliviana para uma rádio de seu país. Foi lá que contou com uma ajuda importante para dar início ao projeto que seria iniciado no ano seguinte.
“Estive lá por 15 dias e conversava muito com a comissão técnica. Me perguntaram sobre jogadoras da comunidade boliviana no Brasil e se tinha alguma escolinha. Falei que eu estava treinando aquelas meninas, mas era aquela situação... O técnico da seleção me perguntou: ‘Por que você não se forma como treinador? Eu vou te ajudar na sua formação e te passar alguns cursos e orientações”.
A ajuda inesperada veio acompanhada do pedido para ajudar a formar meninas bolivianas no futebol. Foi a partir daí que levou a sério a trajetória para ser técnico de futebol e futsal, realizando diversos cursos na área.
Espinoza criou a escolinha em 2016 e, logo, várias meninas apareceram para jogar. O primeiro espaço esportivo boliviano na cidade, chamado Mi Cancha (Meu campo, em português), foi inaugurado curiosamente no Jardim Japão em uma rua que carrega, em referência ao bairro, um nome nipônico. Aos poucos, o projeto foi crescendo e se expandiu para três quadras. “Apesar disso, ainda precisamos lidar com o preconceito com as meninas jogarem futsal. Infelizmente, isso acontece”, conta.
Entre as crianças da escolinha, muitas vezes o espanhol se mistura com o português, mas todas se entendem. O espaço serve também para reunir e confraternizar os membros da comunidade boliviana. A Bolívia é o segundo maior grupo de imigrantes que entraram no Brasil de 2011 a 2020, atrás de venezuelanos e haitianos, segundo dados do Observatório das Migrações Internacionais.
As aulas nas sextas-feiras e sábados são destinadas para meninos entre 5 e 14 anos e, em grande maioria, para meninas, adolescentes e mulheres entre 7 e 25 anos atuando em diferentes categorias.
Nem Espinosa, nem a coordenadora Janeth Aguilar, também boliviana, recebem salário por liderarem o projeto. O dinheiro recebido da mensalidade de R$50 é direcionado para o pagamento do aluguel das quadras e da compra de material esportivo. A falta de patrocínio faz com que a escolinha muitas vezes precise contar com ajuda financeira dos próprios pais e mães das alunas. “Infelizmente, não temos muitos recursos”, diz Espinoza ao citar a união da comunidade boliviana.
Ao todo, quase 500 alunas já passaram pela escolinha. As equipes de diferentes categorias disputam campeonatos e já conquistaram alguns troféus desde então. Recentemente, três atletas formadas no projeto foram aprovadas para a base do Corinthians, motivo de grande orgulho para todos.
“Para nós, a educação é muito importante. Fizemos sempre um trabalho de mostrar o caminho certo para elas”.