21 de dezembro de 2021 | 10h00
Quando Ronaldo fechou a compra de 90% das ações do Cruzeiro, a notícia abalou o futebol brasileiro. Muitos torcedores começaram a se perguntar: "o que é Sociedade Anônima do Futebol (SAF)?", "o que é clube-empresa?", embora o assunto já estivesse no noticiário desde agosto, quando a lei foi aprovada. Afundado em dívidas, o clube mineiro entendia que a única saída era virar SAF e atrair investimentos para se reorganizar e recuperar financeiramente.
Para isso, precisou mudar o estatuto e decidiu contratar a XP Investimentos para ajudar no processo de transformação. Para especialistas, mais exemplos de SAF podem surgir no futebol brasileiro. O Estadão reuniu neste texto tudo o que se sabe sobre esse negócio e sobre as regras da Sociedade Anônima do Futebol.
Ronaldo vai investir a quantia de R$ 400 milhões no Cruzeiro. Como informado pela XP, em nota, o valor será investido ao longo dos próximos anos. Ele não foi pago em sua totalidade ao clube imediatamente. Alguns tópicos da transação ainda não foram divulgados publicamente, como detalhes do projeto.
Os clubes podem ser empresas sem necessariamente instituir a SAF, como o Red Bull Bragantino, por exemplo. A lei da SAF não permite que os clubes virem empresa, mas cria mecanismos que incentivam a prática. A maioria dos times brasileiros hoje é associação sem fins lucrativos. Os clubes precisam realizar mudanças em seus estatutos para adotar o formato SAF. Trata-se de um processo que precisa ser debatido com cuidado e de forma detalhada. O Cruzeiro concordou mudar seu estatuto e vender de 49% de suas ações para 90%. Ronaldo ficou com tudo.
Os clubes SAF negociam com possíveis compradores discutindo planos que envolvem muitas variáveis: definição do planejamento de reestruturação de dívidas, qual será a quantia a ser investida, dentre outros tópicos. Adotando a SAF, o clube passa os ativos para a empresa, que substitui o time em campeonatos e assume os contratos de jogadores.
Não. Existem casos de sucesso e fracasso do modelo mundo afora. Virar clube-empresa não significa um passe de mágica para resolver os graves problemas de um clube do dia para o outro. Após virar acionista majoritário do Cruzeiro, Ronaldo se manifestou em seu Instagram e pregou cautela no longo processo que o clube mineiro tem pela frente. "É a minha vez de tentar abrir portas para o time. Não como herói. Não com super poderes para, sozinho, mudar a realidade. Mas com imensa responsabilidade. Com gestão inteligente e sustentável para um crescimento de médio e longo prazo", diz o texto.
Não. Os clubes que são associações sem fins lucrativos podem continuar nesse formato.
Os clubes podem vender até 100%, caso queiram. Isso é estabelecido pelos próprios clubes, que precisam confirmar a mudança em seus estatutos. O Cruzeiro, como associação, manteve 10% de suas ações, enquanto negociou os outros 90% com o ex-jogador Ronaldo. Antes, o clube mineiro pretendia ter 51%, mantendo o controle sobre o futebol. Mas o entendimento foi de que a estratégia não atrairia investidores. Dessa forma, houve a mudança para deixar a maior parte das ações com um comprador.
Alguns especialistas acreditam que a falta de transparência quanto à origem do dinheiro investido pode levantar dúvidas sobre a lisura de projetos. Originalmente, o projeto obrigava as SAFs a informar o nome dos donos de cotas com 10% ou mais do clube-empresa. Essa parte foi retirada da legislação antes de sua aprovação, com o veto sendo mantido pelo Congresso posteriormente. Sob o argumento de atrair investidores para aquecer a prática, o trecho resguardava conflito de interesses ou, até mesmo, a lavagem de dinheiro.
A lei criou um mecanismo que facilita a quitação dos passivos. A SAF nasce sem dívidas, logo essas pertencem ao clube (associação). A lei diz que 20% da receita do clube-empresa e 50% dos lucros e dividendos, caso tenha, devem ser destinados ao clube (associação) para pagar as dívidas.
O texto também criou o Regime Centralizado de Execuções (RCE), que permite renegociar dívidas trabalhistas e cíveis de forma unificada. O prazo para pagamento é válido por seis anos, mas pode ser ampliado para mais quatro, caso já tenha pagado pelo menos 60% da dívida.
O valuation é um importante passo para os clubes que migram para o modelo SAF. Trata-se do processo para estimar o valor de uma empresa. Vários fatores, não só tamanho de torcida e faturamento, são colocados na mesa para definir quanto custa um clube. É preciso realizar um levantamento detalhado e cuidadoso de todas as áreas. Não existe uma única metodologia.
"Não dá para fazer valuation à distância nem aplicar o mesmo modelo para todos os clubes. Mesmo nos mercados maduros, a estratégia é usar mais de um modelo para tentar convergir o valor, excluindo eventuais discrepâncias. É preciso entender o real valor dos ativos, dos atletas, da base, as estruturas de custos, e isso só estando dentro do clube. No fundo, valuation de qualquer ativo tem seus segredos, e no caso de uma atividade volátil e incerta como o futebol é algo ainda mais complexo", explica Cesar Grafietti, economista e consultor de Gestão e Finanças do Esporte.
"O acionista controlador da SAF não poderá deter participação, direta ou indireta, em outra SAF. Portanto, no caso do Ronaldo, o único clube que ele poderá investir no Brasil é o Cruzeiro", diz Eduardo Carlezzo, especialista em direito desportivo e responsável pela constituição da S/A do Atlético-GO. No entanto, essa foi uma das críticas à lei. Investidores escondidos em sofisticadas estruturas societárias podem deter mais de dois clubes.
As SAFs pagam 5% de imposto de suas receitas mensais nos cinco primeiros anos de operação, com exceção do dinheiro da venda de atletas. A partir do ano seguinte, o montante arrecadado com as transações de jogadores seria tributado, com a taxa caindo para 4%.
Apesar de a lei do clube-empresa deixar claro que o acionista de uma SAF não pode ser o mesmo de outras entidades esportivas, a falta de exigência dessa divulgação coloca em risco a integridade do projeto, com investidores escondidos em sofisticadas estruturas societárias para deter mais de dois clubes.
Não. Um exemplo é o Athletico-PR, que é elogiado pela organização financeira e caminha para virar SAF. É um desejo do presidente Mario Celso Petraglia.
Sim. Como toda empresa, está sujeito à falência. A lei permite que se possa buscar recuperação judicial ou extrajudicial.
É improvável reproduzir no Brasil casos como do Manchester City, Paris Saint-Germain e Newcastle, cujos donos são bilionários das famílias reais dos Emirados Árabes Unidos, Catar e Arábia Saudita, respectivamente, que investiram quantias enormes de dinheiro em contratações. Tal prática é chamada por especialistas de sportswashing, o uso estratégico e político do esporte para melhorar sua reputação no mundo, escondendo ações negativas de seus governos. Nesses casos, os clubes escolhidos atuam nas principais ligas do mundo.
"Falamos com investidores de todas as partes do mundo: brasileiros, europeus, americanos, do Oriente Médio. Entramos em contato com centenas. Recebemos a resposta de dezenas. Fechamos acordo de confidencialidade que nada mais é do que troca de informações sobre o Cruzeiro que a gente imaginava de valor da marca, da torcida. Deixo bem claro hoje que não existe o interesse de árabes bilionários para colocar aqui milhões de dólares no futebol brasileiro", disse Pedro Mesquita, sócio da XP Investimentos, que liderou o processo, ao "Canal do Nicola".
Quais os pontos mais criticados na Lei da SAF?