O maior traficante de carne humana do século XVII
No genial romance Quincas Borba (1891), Machado de Assis conta a história de Prudêncio, o escravo vítima de maus-tratos, alijamento, e que, tão logo se vê liberto, compra seu próprio escravo para, ato contínuo, surrá-lo e alijá-lo. Em tempos politicamente corretos, de idealização das vítimas, esse parece mais um exemplo do eterno niilismo do Bruxo do Cosme Velho.
Infelizmente a história mostra que a arte copia a vida, como nos revela o diplomata, historiador e maior africanólogo do Brasil, Alberto da Costa e Silva, 90 anos, que escreveu a excelente biografia do ex escravo baiano, Francisco Félix de Souza, Mercador de Escravos, publicada pela editora Nova Fronteira, em 2004, com 208 páginas. Biografia essa onde o diplomata e historiador traça um painel cruel, estarrecedor de como o maior traficante de escravo do mundo, filho de pai branco com mãe índio mestiça, de visão, astúcia, competência e eficiência, se tornou o maior mercador de escravos do mundo, que transportava da Grande Fortaleza de Judá, o mais terrível entreposto de escravos da história escravista, construído pelos portugueses no século XVI para armazenar carne humana viva!
Francisco Félix de Souza, apelidado de Chachá, nasceu em Salvador, provavelmente no dia quatro de outubro de 1754 e morreu em Benin, África Ocidental, no dia oito de maio de 1849, aos 94 anos. Filho de um português traficante de escravos e de mãe índia mestiça, foi alforriado aos dezessete anos, decidindo viajar para a África quando tinha por volta de vinte e três anos. Não se sabe se por desterro o motivo da viagem, acredita-se que tenha sido a negócios em nome da família, retornando depois de três anos ao Brasil.
Em 1800 decide se estabelecer definitivamente em Ouidah (Ajudá), no Golfo de Benin, ao que parece como comerciante privado. Posteriormente, com a falência de seus negócios em solo africano, passa a prestar serviços à guarnição do forte de São João Batista de Ajudá, pertencente aos portugueses, no reino do Daomé, atualmente território da República do Benin. Com a falta de nomeação de administradores para o forte, Francisco Felix de Souza passa a governador interino do entreposto, posição que abandona logo depois para se dedicar ao comércio de escravos cativos de guerra, exportados para o Brasil e Cuba, atividade já tornada ilegal até mesmo em Portugal e norte do Equador.
A vida de Francisco Félix de Souza foi transformada em filme, COBRA VERDE (1987), filmado no Brasil e na África, com o ator Klaus Kinski interpretando o controvertido traficante de escravos. Foi produzido e dirigido pelo competente diretor Werner Herzog, roteiro extraído do romance O VICE-REI DE UDÁ, do aventureiro inglês BRUCE CHATWIN. Mas foi graças a Alberto da Costa e Silva que, pela primeira vez, o tema foi tratado com apuro historiográfico. Sem deixar de lado o fascínio rocambolesco da sua vida pessoal, o aventureiro de Salvador que, na África, conseguiu poder, nobreza e uma fortuna calculada em US$ 120 milhões, que fez dele um dos três homens mais ricos do mundo. Mas, ao morrer, já decadente e sem prestígio, com 94 anos, deixou mais 53 mulheres, mais de 80 filhos e mais de doze mil escravos à deriva.
A vida de Francisco Félix de Souza, o Chachá de Ajudá, título honorífico lhe concedido na cidade de Uidá, é fascinante pelo seu espírito aventureiro, pela sua astúcia, tirania e crueldade, tornando-se o maior traficante de carne humana viva do mundo no século XVII.