FIM DO MUNDO NO SERTÃO
Raimundo Floriano
Fogo consumidor
Diziam, era voz corrente por aí, que o Mundo iria se acabar no ano de 2020. Não sei em que essa previsão se baseia. Era pra isso ter acontecido na passagem de 1999 para 2000. Como a tragédia não aconteceu, postergaram-na para 3l de dezembro de 2001. Nova furada. Mas agora, afirmam, é pra valer! E sempre inventam mais uma!
Possa ser! Possa ser!
Diante dos tsunamis, dos furacões, dos terremotos, das inundações, dos ciclones, dos vulcões, das geleiras despregadas e de outras desgraceiras, o jeito é a gente parar pra pensar seriamente no assunto e também pra relembrar as previsões desmascaradas no decorrer de nossas vidas, e chegar à certeira conclusão: o Mundo só se acaba, verdadeiramente, para quem morre.
Desde menino, eu venho convivendo com tais vaticínios. Um deles surgiu ali mesmo em Balsas, sertão sul-maranhense, minha terra natal, no ano de 1948.
Certo tipo popular, ladino que só ele, alcunhado de Zé Macaco, que prestava serviços domésticos na casa de uns bacanas de lá, inventou mirabolante plano de ganhar alguns trocados e logo tratou de colocá-lo em prática. Havia na cidade um primo seu, conhecido por Zé Carpina, que andava assim, como se diz, matando cachorro a grito e tomando chupa de laranja de boca de jumento. Zé Macaco procurou Zé Carpina e o convidou para a empreitada, explicando-lhe como a engabelação se sucederia.
Primeiramente, anunciariam o Fim do Mundo, sem data marcada, mas não pra todos os seres humanos. Escapariam os que afixassem na porta de casa uma pequena cruz de madeira. Aí, vinha a parte societária de Zé Carpina, que fabricaria as cruzinhas a serem vendidas por Zé Macaco, sendo os lucros rachados entre os dois.
Zé Carpina argumentou que em Balsas o povo nem ia ligar para a previsão, visto que todos os habitantes de lá conservavam a tradição de dar uma piabinha viva para seus filhos engolirem, na intenção de que se tornassem bons nadadores. Naquele tempo, não havia água encanada, e todos, desde os cueiros, tomavam banho era no Rio Balsas mesmo, daí a fama dos balsenses como craques no nado e no mergulho. Dessa forma, o Mundo poderia se acabar todinho, mas não em Balsas! Isso o Zé Carpina concluiu levando em conta que o último Fim do Mundo de que se tem notícia aconteceu com um dilúvio. Mas, matreiro como sempre, Zé Macaco rebateu:
– Desta vez, o Fim do Mundo vai ser com fogo!
Aí, Zé Carpina entregou as armas e se lançou na atividade da fabricação das cruzinhas, que tiveram grande saída no crédulo mercado sertanejo. Meu pai, Seu Rosa Ribeiro, recusou-se a dar fiança ao boato e a comprar a cruz salvadora, mas eu, me cagando de medo, fiz uma de talo de buriti, miudinha, e dei um jeito de pregá-la em nossa porta.
A 5 de fevereiro de 1949, saí de Balsas para estudar em Floriano, já pensando em fabricar outra cruzinha para pregar na porta de minha Tia Maria Isaura, com quem eu iria morar, e muito me admirou o fato de que naquela metrópole não havia cruz em casa alguma, e ninguém sabia do que os esperava. Pensei: “– Vão se ferrar todos, comigo junto!”.
Portanto, estando eu ausente de Balsas, deixo o restante desta narração a cargo do meu amigo Chico Fogoió, que não se fartava de fazer mangação da artimanha dos dois Zés.
Aconteceu que, no início de 1949, ocorreu uma grande estiada naquele sertão, sabidamente invernoso nos primeiros meses. A lavoura estava a se perder. A terra esturricada, o pasto ressequido e a ponto de incendiar-se espontaneamente na chapada. Só não faltava a água pra se beber e banhar, porque Balsas é quase uma ilha, formada por três rios que a circundam: o Balsas, o Maravilha e o Cachoeira. Pra qualquer lado que se vá, tem-se que atravessar uma ponte. Mas chuva que é bom, pra molhar a plantação, necas! E o calor era de lascar o cano!
No dia 19 de março, Dia de São José, protetor dos lavradores e roceiros, o povo resolveu fazer uma procissão pra pedir-lhe chuva e também pra que não permitisse que acontecesse o anunciado Fim do Mundo. Padre Clóvis, nosso vigário, não encampou a ideia nem deixou que os beatos levassem a imagem do Santo no cortejo.
Mesmo assim, a multidão era grande, a rezar, a cantar hinos e benditos, a rogar e até a chorar.
Procissão de crédulos no boato
Naquele tempo, chegara por lá uma missionária protestante, lapa de loura americana de quase dois metros de altura, chamada Miss Ila (pronuncia-se missiáila), que resolveu tirar algumas fotos daquele ato religioso até então para ela desconhecido. Detalhe: o povo de lá jamais vira um flash!
Mais ou menos às seis da tarde, quando o lusco-fusco já dominava a região, e a procissão adentrava a Praça da Matriz, Miss Ila engatilhou a máquina e apontou para onde os beatos carregavam uma grande cruz. No meio deles, Dona Úrsula, senhora muito religiosa, que, cabisbaixa, com seu rosário na mão, temerosa e contrita, murmurava suas orações.
Tudo pronto, tudo preparado, Miss Ila apertou o botão do flash! POW!
Dona Úrsula, ao ouvir o pipoco, olhou pro rumo da gringa e, mal-assombrada diante daquela claridade ofuscante e desconhecida, gritou a plenos pulmões para a multidão de beatos:
– Fogo na Terra, minha gente!
Beatos em debandada
Foi uma debandada geral! Pareceu um estouro de boiada! O povo, completamente apavorado e ensandecido, arremessou a cruz no chão e abalou em desembestada carreira rumo ao rio, jogando-se das ribanceiras n’água, com roupa e tudo, no mais perfeito salve-se quem puder!
Chico Fogoió arremata desta forma o episódio:
– Mundinho Fulô, só não morreu muita gente, aliás não morreu ninguém, porque, como tu bem sabes, o povo de Balsas, todo ele, sabe nadar, graças às piabinhas vivas engolidas na infância!