05 de junho de 2020 | 10h00
Do clássico O Nascimento de Uma Nação, de David W. Griffith, de 1915, ao recente Infiltrado na Klan, de Spike Lee, por mais de um século o racismo esteve presente nas telas como na própria vida norte-americana. Os dois filmes são emblemáticos porque abordam a sociedade secreta criada no Sul dos Estados Unidos, após a Guerra Civil, para tentar manter o ideal da supremacia branca. Neste momento em que o Caso George Floyd provoca protestos e as grandes cidades dos EUA ardem em manifestações como no auge da luta por direitos dos anos 1960, vale viajar um pouco na lembrança para recordar filmes que fizeram história com sua abordagem de temas como racismo, linchamento. A violência racial é endêmica na 'América', como afirma a ON
A morte da garota branca pelo 'negro' - um ator branco com o rosto pintado - impressiona até hoje pela perfeição da montagem e pela utilização da paisagem natural. O paradoxo de Griffith. Grão-senhor sulista, filho de um coronel arruinado, foi decisivo para o desenvolvimento do bê-á-bá da linguagem cinematográfica. Mas The Clansman, como se chamava originalmente o filme, é um monumento ao racismo. Griffith fez outros filmes que mostraram seu lado liberal e progressista (Hearts of the World, Intolerância), mas o sulista confederado falava mais alto quando o tema era a negritude.
O romance de Margaret Mitchell já é uma ode ao espírito sulista. O épico produzido por David O' Selznick mantém o tom. Ganhou todos aqueles Oscars em 1939. Mostras os carpetbaggers, escravos libertos que serviram de testas de ferro para os nortistas que compravam a troco de nada propriedades de aristocratas falidos. As personagens negras (Mammy, Prissy) são vistas com preconceito. E na estreia do filme, em Atlanta, as atrizes - nem Hattie McDaniel, que ganhou o Oscar de coadjuvante -. puderam sentar-se com o restante do elenco porque era proibido, pelas leis racistas da Georgia.
Talvez o maior filme antirracista produzido por Hollywood na fase pré-Spike Lee. Baseada no livro de William Faulkner, a história do velho negro ameaçado de execução sumária por um crime que não cometeu. O clima de festa, quando os brancos preparam o linchamento, é de arrepiar. Provada sua inocência, a comunidade branca terá de conviver com o fato de que o preconceito quase destruiu o homem bom, íntegro.
Da obra de Prosper Mérimée revista no musical de Oscar Hammerstein, Otto Preminger tirou um grande filme, com canto, dança e Dorothy Dandridge como a definitiva femme fatale. Esqueça Gilda. Nunca houve uma mulher como Carmem Jones. Dorothy, Harry Belafonte. Black is beautiful, mas o tom é de tragédia, um clássico.
Tony Curtis e Sidney Poitier fogem da cadeia ligados por uma corrente. O ódio mútuo cede espaço à compreensão e à solidariedade. Stanley Kramer era aquele diretor que os críticos amavam odiar nos anos 1950 e 1960, mas abordou grandes temas políticos. Abordou ou estragou? Há controvérsia, mas não há como negar a força dos atores.
Dorothy Dandridge e Otto Preminger, juntos e de novo. A ópera folk de Gershwin, a história de amor, sonho e ciúme. Sidney Poitier construiu uma persona de 'bonzinho', meio assexuado. Nunca foi tão viril como aqui. E Summertime é daqueles números que não se esquece.
O clássico dos clássicos do melodrama, pelo maior autor do gênero, Douglas Sirk. A estrela Lana Turner, sua doméstica negra (Juanita Moore) e a filha dela (Susan Kohner) que se faz passar por branca. Sexo, racismo e o grandioso funeral do desfecho. O adeus à velha Hollywood. O mundo e o cinema iriam mudar nos anos 1960.
O western de John Ford que marca o tributo do grande diretor aos soldados negros da Cavalaria norte-americana. O assassinato da garota branca no forte, o negro levado a julgamento. Jeffrey Hunter como o oficial que trabalha na defesa, Woody Strode, o acusado. Narrado em flash-back, um filme fora do eixo (adiante do seu tempo?) em 1960.
Sidney Poitier tornou-se o primeiro negro a ganhar o Oscar de melhor ator. Fez história, e foi nesse filme dirigido por Ralph Nelson. O operário desempregado (e negro) que ajuda o grupo de freiras (brancas) a construir a capela. Lilies of the Field, título original. Olhai os lírios do campo, Senhor. Ecumênico, bonito.
Stanley Kramer, de novo, e Sidney Poitier. Ele faz o namorado que a garota branca leva para conhecer seus pais. Spencer Tracy e Katharine Hepburn, no último de seus nove filmes juntos, são os pais liberais, e chiques, que tomam um susto. Os dois veteranos ganharam o Oscar, e foi o segundo para cada um dos dois.
Jules Dassin transpôs o romance de Liam O Flaherty, que já havia inspirado O Delator, de John Ford, nos anos 1930, para os protestos de negros nos 1960. 'I have a dream' e o assassinato de Martin Luther King. Protestos em Cleveland provocam a morte de um vigia branco. A polícia oferece recompensa e Tank Williams/Julian Mayfield termina por delatar o amigo. Por que? Dassin teve de se exilar nos anos 1950 por causa do macarthismo.Voltou para esse acerto de contas com a 'América'.
Martin Ritt fez o que talvez seja o Vidas Secas do cinema norte-americano. A vida de uma família negra, e pobre, durante a depressão econômica, vista através dos olhos do cachorro, que se chama Sounder, o mesmo título original do filme. Indicado para melhor filme, ator e atriz, Paul Winfield e Cicely Tyson, mas era o ano de O Poderoso Chefão. E Cabaret.
Spike Lee, a pizzaria no Brooklyn que só tem na parede retratos de personalidades ítalo-americanas. O calor insuportável que acirra os ânimos da população negra, que quer se ver representada, o confronto. Não foi nem indicado na categoria principal, mas segue sendo o melhor filme feito por um cineasta negro dos EUA. Concorreu a roteiro (Lee) e ator coadjuvante (Danny Aiello). Não levou nenhum.
Oscars de melhor filme, atriz (Jessica Tandy) e roteiro adaptado para a história da velha dama sulista e seu motorista negro. Foi o filme para o qual Spike Lee perdeu em 1989. Bruce Beresford dirige. E Morgan Freeman já vinha se destacando (Armação Perigosa, Tempo de Glória). Nos anos e décadas seguintes, adquiriu estatura. Interpretou presidiários, sábios, presidentes, até Deus. Grande ator.
A cinebiografia de Malcolm Little, que se tornou conhecido como Malcolm X. Sua transformação em Al Hajj Malik Al-Shabazz que criou a Organização para a Unidade Afro-americana e defendia o Nacionalismo Negro. Spike Lee dirige o imperial Denzel Washington, que foi indicado para melhor ator (e perdeu aquele Oscar para o Al Pacino de Perfume de Mulher).
Tudo a ver com a história de George Floyd. Baseado em outra história real, a do jovem negro Oscar Grant, morto em 2009 por um segurança de metrô em Oakland. Estreia do futuro diretor de Pantera Negra, Ryan Coogler, que declarou. “Em Oakland, se você é negro, não tem expectativa de chegar aos 30. Eu jurava que não chegaria, tal é a violência que nos é (como negros) imposta.” Michael B. Jordan virou astro no papel.
O Caso O.J. Simpson e o julgamento do ator acusado de matar a mulher e o amante dela. Oscar de melhor documentário de 2017, o longa de Ezra Edelman e Caroline Waterlow é sobre o processo e o julgamento que inocentaram O.J. Para a dupla, a culpa é da 'América'- racismo, sexo, celebridades, dinheiro. Todos os ingredientes para um novelão.
Jordan Peele virou o arauto do novo poder negro de Hollywood. Ganhou Oscar e tudo o mais. E embora seu filme deva muito a Esposas em Conflito, de Bryan Forbes, de 1975, tem também um quê de Adivinhe Quem Vem para Jantar? A história do jovem negro que vai conhecer os pais da namorada branca e ingressa num pesadelo tem muito a ver com o racismo instalado na cabeça das pessoas e que, de Griffith a Donald Trump, com seu discurso belicoso contra as manifestações atuais nos EUA, exige reflexão - e repúdio.
Spike Lee chegou lá e finalmente ganhou seu Oscar (de roteiro adaptado) graças ao apadrinhamento de Jordan Peele, que produziu o filme. John David Washington, filho de Denzel, faz policial negro que se infiltra na racista Ku Klux Klan. Como? A história é real e o relato integra elementos da estética dos blaxploitation movies dos anos 1970.
Ryan Coogler e o super-herói negro dos comics, interpretado por Chadwick Boseman. Sucesso de público e crítica, um filme rico em colorido e som, com o pé na cultura africana. Venceu, merecidamente, os Oscars de trilha, figurinos e direção de arte em 2019, no mesmo ano de Infiltrado na Klan.
Cannes divulgou na quarta-feira, 3, sua lista de filmes para a edição de 2020. Serão distribuídos em parcerias com diversos eventos internacionais de cinema no segundo semestre, quando se presume que a situação da covid-19 terá melhorado. Há esse filme brasileiro, e sobre racismo. João Paulo Miranda dirige Antônio Pitanga na história do operário negro que conhece o preconceito numa cidade fictícia de colonização austríaca no Sul do Brasil.