30 de setembro de 2019 | 06h54
Sócrates é negro, pobre e gay. Garoto da Baixada Santista, tem esse nome porque a mãe, corintiana, quis homenagear o grande jogador. Embora seja só um garoto, Sócrates enfrenta um momento particularmente difícil – está sendo despejado do lugar aonde mora, a mãe morreu e existem trâmites burocráticos que ele não consegue concluir, incluindo a liberação do corpo para ser enterrado. Com que dinheiro? Sócrates, protagonista do filme que tem seu nome, é um dos personagens mais fortes do cinema brasileiro recente. O filme dirigido por Alex Moratto, produzido em parceria com o Instituto Querô, de Santos, estreou na quinta, 26, coroado por numerosos prêmios no País e no exterior.
Na trama, o menino Sócrates até pensa em prostituir-se para sobreviver, cavouca no lixo para comer. O horror, o horror. Moratto, que completa 31 anos em novembro, resolveu contar essa história por profunda necessidade interior. Para ele, o cinema não é nenhuma diversão. É algo visceral, que tem de vir de dentro. Sócrates, o filme, nasceu do seu sofrimento, da necessidade de fazer o luto. Filho de pai norte-americano e mãe brasileira, Moratto vive até hoje entre os EUA e o Brasil. A mãe, separada do pai. Praticamente sozinho, e com o apoio da médica que a assistia, ele enfrentou a doença, a morte. O filme permitiu-lhe superar tudo isso. Superar não é bem a palavra. Certas coisas a gente carrega pela vida
Mas ele tem tido compensações. Sócrates participou de mais de 40 festivais em todo o mundo. Ganhou 15 prêmios, entre eles o Oscar dos independentes, o Spirit Award. Num desses festivais, ao exibir o filme de Moratto, o curador disse que as condições humanas e sociais são específicas, mas o luto, como tema, é universal e o processo comprometido de produção fazia toda a diferença. Na semana que passou, o diretor participou de debates em São Paulo. Num deles, com jovens da periferia, foi quase às lágrimas quando um garoto se levantou, disse que poderia ser o Sócrates da ficção e agradeceu a Moratto por se ver na tela. Não são muitos os filmes que representam esse segmento social. No caso do clássico Cidade de Deus, os jovens pegam em armas, abrem caminho a bala.
Sócrates segue outra via. Moratto venera Cidade de Deus, e Fernando Meirelles. “O filme recebeu o maior apoio da O2 Play. E ele é um grande diretor.”
O projeto começou a nascer quando Moratto, de férias no Brasil, estava em Santos. Uma amiga de sua mãe viu um anúncio do Instituto Querô, uma ONG que utiliza o audiovisual como ferramenta de inclusão social de jovens de 16 a 25 anos, em situação de risco. Foi através do instituto que ele conheceu Christian Malheiros, que viria a ser ator do filme. “Christian tinha aquela urgência, aquele desespero estampado na cara. Testei muitos jovens, ia fazer o filme com outro, mas terminei voltando ao Christian. Foi a melhor escolha.”
Nesse Brasil que ficou tão conservador, mostrar um personagem que faz sexo com outro homem, limpa banheiros e fuma maconha não será transgredir demais? “Em todo o mundo, o filme foi recebido como uma obra verdadeira e humana. Nosso objetivo é a dignificação do humano, não a degradação. Christian é ator, diz uma coisa linda. ‘Difícil não foi o beijo gay, foi procurar a comida no lixo.’ Não pode, as pessoas merecem mais do que isso”, diz o indignado diretor. Ele trabalha no próximo filme, que já tem verba norte-americana. É diferente, mas na mesma vibe. “Seven Slaves, Sete Escravos é sobre tráfico de pessoas, outra indignidade dos tempos atuais.”