10 de março de 2021 | 05h00
Para quem está com problemas de se manter produtivo e criativo durante a pandemia, foi um tapa na cara a seleção do 71.º Festival de Berlim, que encerrou na sexta-feira sua fase virtual, na esperança de realizar uma versão ao vivo em junho. Mesmo com a produção audiovisual semiparalisada há mais de um ano, cineastas do mundo inteiro conseguiram escrever, filmar ou adaptar projetos em plena crise da covid-19.
O vencedor do Urso de Ouro é um deles. Bad Luck Banging or Loony Porn, do romeno Radu Jude, resolveu assumir as máscaras, fazendo uma produção que vai ficar marcada pelo seu tempo. O diretor fazia questão que fosse assim. “Eu até entendo cineastas que querem realizar filmes eternos, mas sou totalmente contra porque eu quero que o filme seja de sua época e do seu lugar”, disse ele em entrevista com a participação do Estadão.
O sul-coreano Hong Sang-soo, que levou o Urso de Prata de roteiro, também rodou seu Introduction pós-pandemia. Mas a única referência à covid-19 é a cena em um restaurante – sempre obrigatória nos filmes do cineasta – em que os personagens comentam que ele está sempre vazio agora.
Também exibido em competição, Memory Box, dos libaneses Joana Hadjithomas e Khalil Joreige, fala da Guerra do Líbano nos anos 1980 e se baseia em uma experiência real dos diretores – na adolescência, Joana escreveu diários e trocou cartas e fitas com uma amiga que havia deixado o país, enquanto Joreige fotografou Beirute na época do conflito. Mesmo assim, o longa ecoa tanto a pandemia quanto a explosão no porto da cidade, que deixou mais de 200 mortos e chocou o mundo. “É muito estranho porque estamos falando do período da guerra, mas o filme é confinado, e aí de repente todo o mundo estava revirando as coisas em casa durante a covid-19”, disse Joreige.
Exibido fora de competição, em sessão especial, Language Lessons, de Natalie Morales, não é sobre a pandemia. “Mas não existiria se não fosse ela”, disse a diretora. O filme também foi inspirado numa história que aconteceu com o ator Mark Duplass, que no confinamento decidiu aprender espanhol para ajudar uma escola guatemalteca à beira da falência. Logo, ele estava discutindo assuntos profundos com sua professora. No longa, Adam (Duplass) contrata a costa-riquenha Cariño (Morales) para aulas de espanhol online. O filme foi quase inteiramente feito no Zoom, com cada um cuidando de seu próprio figurino e maquiagem.
A francesa Céline Sciamma, que apresentou Petite Maman na competição, e o canadense Denis Côté, de Social Hygiene, também enxergaram na pandemia uma oportunidade. Os roteiros já estavam escritos. “Achei que ele era mais relevante do que nunca”, disse Sciamma em coletiva de imprensa. Petite Maman começa com a morte da avó de Nelly. A menina ajuda a mãe Marion a encaixotar seus pertences, até que, num passeio pela floresta, encontra Marion em versão criança. O filme fala de perda, luto, herança, memória.
Já o bem-humorado Social Hygiene, que rendeu a Côté um prêmio de direção da seção Encontros, parece um filme sobre a pandemia. Antonin (Maxim Gaudette) é um bon vivant transformado em ladrão e fonte de decepção para cinco mulheres em sua vida: sua irmã Solveig (Larissa Corriveau), sua mulher Églantine (Evelyne Rompré), sua amante Cassiopée (Eve Duranceau), a coletora de impostos Rose (Kathleen Fortin) e uma das vítimas de seus crimes, Aurore (Éléonore Loiselle). Os personagens, às vezes, usam roupas de época, mas fazem referências a coisas modernas, como o Facebook. Os diálogos, em geral entre Antonin e um personagem, se dão ao ar livre, com grande distanciamento.
Mas, incrivelmente, Social Hygiene nasceu bem antes da pandemia, quando Côté passou férias em Sarajevo. Sem conhecer ninguém na cidade, ele acabou escrevendo um roteiro sobre distanciamento social, antes de virar obrigatório. “Acreditem em mim: escrevi essa história, com esse título, em 2015”, contou o diretor ao Estadão. Em maio do ano passado, sua amiga Larissa Corriveau perguntou se ele não tinha nada que pudesse ser feito naquele momento. O diretor se lembrou das páginas de cinco anos antes, mas precisou ser convencido. Côté nega veementemente que se trate de um filme de pandemia. “Acho a covid-19 deprimente e extremamente chata. Posso me projetar daqui a seis meses ou um ano e acho que não vamos falar mais sobre isso, vai ser uma coisa do passado, a não ser, claro, para quem foi diretamente afetado.”
No caso da diretora chinesa Shengze Zhu, a pandemia era algo pessoal. Hoje baseada nos Estados Unidos, ela nasceu e foi criada em Wuhan, o primeiro epicentro da pandemia. A River Runs, Turns, Erases, Replaces, exibido na seção Fórum, era um projeto de documentação das transformações radicais na paisagem de sua cidade natal a partir do rio, central na vida de seus moradores. “Wuhan foi ficando irreconhecível para mim cada vez que eu voltava para lá”, explicou ela. “Pensei que uma mudança tão vertiginosa poderia causar problemas.”
Shengze Zhu começou a rodar em 2016 e planejava finalizar em 2021. Mas, quando a covid-19 tomou a cidade, ela achou que seu plano não fazia mais sentido. “Embora as imagens sejam as que eu tinha capturado antes, a maneira como editei está bem distante do projeto original. O que aconteceu no ano passado teve profunda influência em mim e nos habitantes.” A diretora incluiu depoimentos em formato de cartas de gente que perdeu marido, pai, irmão para a doença. “O filme já era sobre mudança e perda. A pandemia só reforçou esse sentido.”