10 de setembro de 2020 | 05h00
Em 1962, quando já era reconhecido como um poeta e crítico de artes plásticas de importância, Ferreira Gullar foi admitido como redator da sucursal do Rio de Janeiro do Estadão. “Sou copidesque, isto é, reescrevo o que os outros escrevem”, explicou ele essa função para Clarice Lispector, que o entrevistou em 1977, logo depois de seu retorno do exílio. Seu vínculo com o jornal fora mantido no período em que foi obrigado a viver fora e, na redação, entre uma matéria e outra, Gullar praticava sua poesia em laudas, como era conhecida a folha de papel na qual os jornalistas datilografavam seus textos, em máquinas de escrever.
Em uma dessas laudas, Gullar escreveu O Sentido da Vida, poema inédito (veja abaixo), escrito entre os anos 1960 e 70, e que sua filha, Luciana Aragão Ferreira, descobriu no arquivo deixado pelo escritor, em seu apartamento no Rio, e que deverá figurar em uma publicação, uma das diversas iniciativas já elaboradas para festejar a obra do poeta, cujos 90 anos de nascimento são lembrados nesta quinta-feira, 10 – ele morreu em dezembro de 2016, em decorrência de uma pneumonia.
Gullar (pseudônimo adotado depois de mudar a grafia do sobrenome da mãe, Goulart) transitou com regularidade e eficiência na ficção, na crônica, na pintura e na crítica (especialmente das artes plásticas), mas encontrou na poesia sua mais expressiva forma artística. Era no verso que o maranhense José Ribamar Ferreira se sentia realmente um homem livre. Basta observar sua obra mais conhecida e divulgada, Poema Sujo. Considerada por muitos como uma das principais realizações poéticas do século passado, foi escrita em 1975, quando o poeta ainda vivia forçosamente exilado em Buenos Aires. Uma rápida leitura e a constatação de que o poema é um doloroso canto em favor da liberdade.
Escrito entre maio e outubro daquele ano, durante o período em que o poeta viveu exilado (e isolado) em Buenos Aires, o Poema Sujo foi gravado por Gullar na época, a pedido de Vinicius de Moraes, que o encontrou na Argentina. Trazida clandestinamente para o Rio, a fita cassete foi ouvida em audições entre amigos e, logo, trechos foram transcritos e distribuídos pela cidade, tornando-se um clássico instantâneo.
Tal história figura no livro Rabo de Foguete, memórias sobre o período exilado, que Gullar publicou em 1998, e deverá constar também na biografia que o jornalista Miguel Conde prepara sobre o escritor, a ser publicada pela Companhia das Letras no ano que vem.
Já a organização da obra de Gullar, especialmente o material inédito, vem sendo feita pela editora Maria Amélia Mello, que manteve um contato muito próximo do poeta ao longo de sua vida, e por Celeste Aragão Ferreira, neta do escritor que acompanhou a rotina de trabalho do avô em seus últimos quatro anos. As duas vão cuidar especialmente dos diários que o poeta iniciou em 1950. “São muitos cadernos e vamos iniciar o trabalho logo após a pandemia amenizar – Celeste, no momento, está lendo todo o material”, informa Maria Amélia.
A programação é promissora: Gullar deixou organizado, por exemplo, um livro de ensaios sobre arte, publicados ao longo dos anos, material inédito em livro, que Maria Amélia vem organizando. Ela e Celeste preveem ainda um volume com ensaios variados sobre arte, filosofia, literatura, crônicas, além de um livro reunindo cartas, em especial a correspondência trocada com Tereza Aragão, sua primeira mulher. “É também um material inédito e muito rico em comentários”, observa a editora.
Mais adiantado está o livro As Muitas Maneiras de Dizer ‘Eu Te Amo’, com 31 ilustrações feitas por Gullar, entre elas, um retrato de Claudia Ahimsa, poeta que foi sua segunda mulher e que organizou o volume – a obra pode ser encomendada pelo site www.urucum.com. É preciso lembrar que Ferreira Gullar era um profundo conhecedor das artes plásticas.
Outro trabalho já disponível é a reedição de Dr. Urubu e Outras Fábulas (Autêntica), obra infantil escrita durante as viagens de carro que o poeta fazia entre Rio e São Paulo, onde gravava um programa de TV para o Sesc. “Para não ficar apenas olhando a paisagem, resolveu escrever os poemas”, conta Maria Amélia. “Ele me disse que foi o único livro que escreveu pensando nas crianças. E os poemas trazem a marca Gullar, em especial a preocupação social. E também têm humor.”
Para festejar o aniversário do poeta, o cineasta Silvio Tendler comanda uma live nesta quinta, às 19h, com Luciana Aragão, Juliana Aragão (neta do poeta), Miguel Conde e o diretor Zelito Viana. Será na página da produtora Caliban Cinema no Facebook.
Já no blog da Companhia das Letras, o também poeta Antonio Cícero vai discutir a importância do Poema Sujo. Haverá ainda sorteio de livros de Gullar. Debates que ajudam a elucidar a forma criativa do poeta, para quem o poema nascia não de inspiração, mas de algo fora de controle. “A poesia nasce do espanto, quando a vida me revela algo que eu desconhecia”, dizia ele.
“Pode acontecer que
enquanto ris
com os amigos no bar
cheio de confiança, de certeza,
a vida te prepare uma surpresa
silenciosamente, lentamente
como as nuvens que rolam pelo ar
*
Poderás dar com ela numa esquina
talvez quem sabe dentro de um cinema
talvez quem sabe num telefonema
*
E de repente nada tem sentido:
é amargo o chope, o papo aborrecido,
a alegria dos outros uma injúria.
A vida em suma
é apenas som e fúria
não significando coisa alguma.
*
Pra que viver então? tu te perguntas,
se a vida é sem sentido e sem razão?
E eu te respondo: é certo,
a vida não tem sentido mesmo não,
O sentido da vida a gente inventa
misturando a mentira com a verdade
do mesmo modo como a nuvem inventa
a sua dança branca, branca e lenta,
sobre a nossa cidade”