A nova moradora chegou à Lagoa Rodrigo de Freitas em meados de setembro: uma garça azul. Por ser muito jovem, por enquanto ela ainda tem coloração branca e pode ser confundida por leigos com a espécie que já habita a região há tempos. Sua chegada reforça a biodiversidade do mangue local, que começou a ser recuperado há 33 anos, com a primeira árvore plantada no Parque da Catacumba, que deu início ao projeto Manguezal da Lagoa.
— No dia a dia, as pessoas olham as capivaras, que são grandes. Mas tem muito bicho circulando, se reproduzindo — observa o biólogo Mário Moscatelli, à frente do projeto desde a primeira semente.
O especialista chama atenção para imagens que circularam pelas redes sociais, de um gambá comendo ovos de um ninho:
— É a retomada de uma cadeia alimentar que não existia. Veja o savacu, um pássaro que come o caranguejo-marinheiro. Se você não tem caranguejo, você não tem savacu. Essa brincadeira demorou 33 anos para acontecer por aqui.
Caranguejo aratu vermelho: nova espécie pode ser vista na Lagoa — Foto: Marcia Foletto
Migração do Maciço da Tijuca
A exemplo da garça azul, outros moradores começaram a dar pinta pela Lagoa. A lista dos recém-chegados inclui quero-quero, biguá dorminhoco, caranguejos aratu e marinheiro, pernilongo (a ave), passarinho casaca couro de lama...
— Quanto mais você tem um ambiente equilibrado, com boa qualidade, você proporciona maior diversidade de ambientes para a bicharada. É como se fosse um passando zap para o outro dizendo: “Pode vir que o ambiente está bacana” — explica Moscatelli.
Parte dessa turma vem do Maciço da Tijuca, e chega à lagoa pelo Rio dos Macacos. É o caso da colorida saracura-três-potes, que não tem muita autonomia de voo e, por isso, precisa “viajar” pela mata e pelas águas.
Moscatelli: "Quanto mais você tem um ambiente equilibrado, com boa qualidade, você proporciona maior diversidade de ambientes para a bicharada" — Foto: Márcia Foletto
Todas as manhãs, uma equipe de quatro pessoas faz rondas pela lagoa para monitorar a área. Há um ano, este trabalho ganhou o apoio da concessionária Águas do Rio, com quem o time tem contato direto para sanar vazamentos de esgoto ou qualquer outra situação fora da normalidade.
— É uma lagoa urbana, está sempre vulnerável a tensores urbanos, como esgoto e lixo. Temos o problema crônico do lixo, que as pessoas não conseguem descartar no lugar correto, a questão da limpeza da lagoa, da fauna, das espécies. Quantifico os ninhos, sempre com um olhar sobre o mangue — diz João Coelho, estudante de biologia que faz parte do projeto. — Claro que ainda vai demorar para a gente mergulhar na lagoa. Mas, para quem vive lá dentro, como peixes, caranguejos e frangos d’água, já há uma melhoria incrível.
No ano passado, nesta mesma época do ano, um grupo de colhereiros encantou os passantes com sua plumagem rosada e bico em forma de colher. Os animais não eram vistos por lá há décadas. Foi uma visita rápida, mas agora já sabem que a casa está pronta para recebê-los mais vezes. Os primeiros a chegar foram os frangos d’água, há 23 anos, uma década após o início do trabalho de reconstrução do mangue.
— Recebi uma ligação dizendo que tinha um monte de “pinto preto” no mangue. Eram os frangos d’água. Parecia até que eles tinham estudado, porque a literatura diz que as primeiras espécies começam a aparecer dez anos após o início da recuperação do mangue — conta Moscatelli, orgulhoso dos resultados de seu trabalho pioneiro: — Desde pequeno ouvia que a lagoa não tinha jeito, que as únicas coisas que tinham aqui eram o Tivoli Park (um antigo parque) e mortandade de peixe.
O exemplo do mangue
Essa virada não foi simples, principalmente por uma barreira cultural. Segundo o biólogo, havia certo preconceito contra a palavra mangue, um ambiente tido como fedorento, que atraía mosquitos e escondia a paisagem. Houve até quem sugerisse construir aterros na região.
— Isso aqui é uma bússola que nos indica que outros ecossistemas degradados, como a Baía de Guanabara, o sistema lagunar de Jacarepaguá e a Baía de Sepetiba, têm jeito. Se foi possível recuperar uma lagoa eminentemente urbana, cercada por cimento e concreto por toda parte, onde o principal corredor é um rio, o Rio dos Macacos, então é possível recuperar outros lugares — afirma Moscatelli. — É uma vitória cultural também, porque a proteção do mangue da lagoa repercute na proteção dos demais manguezais, seja em Angra dos Reis, em Paraty. Essa é uma área de atenção de formadores de opinião. O cara vê um manguezal degradado, vai lembrar do exemplo da lagoa.