No dia 9 de agosto, Fafá de Belém completará 64 anos. A festa já está definida: vai cantar para o mundo todo em uma live baseada em Fátima, Portugal, lugar de peregrinação dos devotos da Nossa Senhora que foi a inspiração para o seu nome. O show fora de casa é exceção na quarentena. O seu apartamento em São Paulo — onde está com a filha, a influenciadora e cantora Mariana Belém, do casamento com Raul Mascarenhas, e as netas, Laura e Julia — é que virou o palco principal para espetáculos e conversas pelo Instagram.
É também por lá que, em outubro, Fafá fará uma versão virtual da sua Varanda de Nazaré, espaço em que normalmente recebe convidados durante o Círio, na sua cidade natal. Com tanta novidade, a conta na rede social (@fafadbelem) deu um salto de 200 mil seguidores para 640 mil nos últimos meses. “Ganhei fãs da faixa de 15 a 19 anos, o que é surpreendente. Com certeza, vieram pela avó, pela mãe, pela curiosidade. Meu público sempre foi muito misturado, uns gostam da música, outros da atitude”, reflete. No último quesito, segue incansável: o período de recolhimento a fez expor a invisibilidade que mesmo uma artista com 45 anos de carreira pode enfrentar quando busca patrocínio. A idade pode afugentar os marqueteiros, mas não a assusta. Deixou de pintar o cabelo no começo do ano e não pensa mais em esconder os fios brancos. A seguir, os melhores trechos da entrevista feita por telefone.
O GLOBO: Além dos shows ao vivo, você tem apresentado duas lives semanais de bate-papo. Como tomou tanto gosto pelo formato?
Fafá de Belém: Estou em casa desde o dia 20 de março. É mais tempo do que todo o período que passei neste apartamento no ano passado (gargalhadas). Em 2019, comecei a trabalhar em 4 de janeiro, e meu último compromisso foi em 29 de dezembro. Tenho rodinha nos pés… Mas agora estamos todos em casa, e eu não sou uma pessoa de ficar para baixo, então comecei a inventar. Veio a pressão das lives — a Mariana, minha filha, dizia “tem que fazer, tem que fazer” — e começou a se desenhar como festejar os meus 45 anos de carreira. Aí comecei a fazer uma live de conversa. Primeiro foi com Nany People, depois com Milton Cunha, padre Fábio de Melo, Mandetta, Vera Fischer… Abri um leque de curiosidades, com pessoas que admiro. Todo domingo tenho feito isso. Gostei da coisa e resolvi também falar de mulheres. Criei o Fafá com Elas. Toda quinta de manhã, quero entrevistar mulheres interessantes e ativas, que militam desde sempre.
E como será a live do seu aniversário?
Pois é, no meio disso tudo, veio o convite para uma live em Fátima, em Portugal [transmissão a partir das 17h30, pelo horário de Brasília, com ingressos a 5 euros em www.cliveon.pt]. Me deu uma mexida muito grande, porque todo mundo sabe que sou uma pessoa da fé. Não sou carola, mas acredito que sem a fé a gente não consegue ir a lugar algum. E sou Fátima por Fátima, porque meu pai fez uma promessa e disse que a primeira filha dele seria dela, Nossa Senhora de Fátima. Nunca imaginei, nem nos meus maiores sonhos, receber um convite para cantar no Santuário de Fátima. Eu só cantei lá há muito tempo numa missa, com a Joanna e o Sérgio Reis. Foi uma canção, e fiquei completamente fora do ar. Então, quando surgiu esse convite, pensei: “isso não veio à toa”. Não acredito em coincidência. É o universo conspirando. Mas já retorno de Portugal no dia 15 porque tenho mais trabalho aqui. Antes do primeiro show que fez em casa, em junho, com um repertório de novelas, foi difícil conseguir patrocínio.
Por que uma cantora com 45 anos de carreira enfrenta uma situação dessa?
Todo mundo adorava o projeto, mas ninguém fechava. Então, chamei minha filha e disse: “Não oferece para mais ninguém. A Kaiapó [sua empresa de produção de shows] banca. Eu não tenho 45 anos de história para ficar passando chapéu”. Não vou ficar mendigando patrocínio. Quase sempre, o pessoal de marketing das agências é muito jovem, com foco específico. E nós, artistas mais velhos, não fazemos parte desse universo. É como se não existíssemos. Você vê uma repetição nas lives, com uma fórmula XPTO, mas quem está cantando para a gente? Quem está falando da memória da música brasileira?
Então a primeira live foi no amor?
Quase. Assim que botamos a publicação no ar, avisando sobre a live, nos ligou o pessoal do Magazine Luiza. Um dos diretores da empresa perguntou: “Como que a gente não está na live da Fafá?”. Aí ficou muito claro que existe um embarreiramento — e, em um momento em que a gente fala de empoderamento feminino, que a mulher pode ter qualquer idade. Mas você vê que isso não está no departamento de marketing das empresas. É uma balela. É o marketing do departamento de marketing para se inserir no contexto. Na prática, não acontece. Depois do Magalu, veio a MDS, que é uma seguradora portuguesa. A partir daí, tudo começou a andar, e então eu fiz questão falar desse assunto. Principalmente porque nós temos público e estamos em casa trancados. Mas fazemos parte dos invisíveis.
Você também tem enaltecido a beleza da mulher mais velha. Vem daí a decisão de deixar os cabelos brancos?
Há uns três anos, eu já queria, e todo mundo falava: “não pode, vai te envelhecer”. Me envelhecer? “Mas tenho 60 anos”, eu dizia. E depois: “Mas tenho 61”. E sempre ouvindo “nãããao!”. “Mas eu tenho 62...”. “Nãããão” também (gargalhadas). Então, aproveitei que, no início do ano, sem saber de pandemia nem nada, passei um mês entre Lituânia e Letônia, sozinha, onde ninguém sabe quem sou eu, e deixei de fazer a raiz. Já cheguei aqui com ela bem vencida e tinha um filme [“Um pai no meio do caminho”, da Netflix] para fazer com a Maísa [Silva], essa menina maravilhosa. No filme, eu interpreto uma guru, com uma peruca, então decidi ir decupando, tirando a tinta. Fui fazendo as pontas, com as matizes do meu cabelo natural. Quando ele começou a abrir, foi lindo. Estou amando. O meu cabelo mudou! Cada vez mais estou voltando para a minha natureza primeira, que é índia, paraense, criada no Mercado Ver-o-Peso, que não toma nem aspirina. Qualquer infecção a gente trata com copaíba (planta medicinal) ou andiroba (árvore da onde é extraído um óleo). Estou me sentindo maravilhosa.
Pretende manter o visual quando tudo isso passar?
Vou manter o cabelo assim, porque, bicho, antes eu tinha que pintar de sete em sete dias. Eu tenho cabelo de índio, que não é grosso, mas é muito forte, e ele expulsa a tinta. Quanto mais velha eu fui ficando, mais rapidamente o cabelo passou a expulsar a tinta. Em três dias já aparecia em toda a moldura do rosto. E isso era uma loucura… Eu não gosto de cabeleireiro, não gosto dessas coisas. Outra mudança na quarentena foi que emagreci 14 quilos! Fui limpando a alimentação também, deixando de comer fora. Porque, se sair, a gente toma logo uma caipirinha. E tomar uma caipirinha e ficar doida em casa? Ah não! Pelo amor do Santo Cristo. Aqui tem uma tacinha de vinho às vezes, muita fruta… Estou buscando uma rotina bem saudável.
A beleza da mulher mais velha também é um tabu à vida amorosa. Isso te afeta?
Olha, minha vida foi sempre um pouco sem idade. Você imagina que eu gravei “Filho da Bahia” para a trilha sonora de “Gabriela” [novela de 1975], e isso explodiu para o Brasil todo, quando eu ia fazer 18 anos. Desde então, eu sempre acordo com várias idades, nunca me preocupei com isso. Nunca tive tempo de ter crise por estar ficando mais velha. Sempre estive trabalhando muito. Então na minha vida, bicho, nem quando eu era adolescente gostava de sair em grupo para o barzinho para dar mole. Mas eu sempre batalhei pelas minhas paixões. Aquele homem que entra no salão e alguma coisa diz “opa”. Os meus grandes relacionamentos foram assim. Mas eu nunca fui muito “apropriada”, porque eu sempre gargalhei alto, nunca tive a paciência de ser patricinha, nunca quis ser Miss Pará, nunca pensei em casar. No perfil da menina que borda, fala inglês, toca piano, que era o aceito e reivindicado pela sociedade, nunca me encaixei. Então eu não me relaciono com ambientes caretas, rigorosos, que prejulgam. Não tenho paciência nenhuma para gente falsa ou para pessoas que têm medo. Minha vida sempre foi muito solta. Namorados fixos, eu tive pouquíssimos. Mas nunca deixei de beijar muuuuuito. E a tia continua no jogo.
Levanta a bandeira da liberdade, é isso?
Sempre. Não dá para você se enquadrar porque “agora eu não posso mais isso, tenho mais de 40 anos”, isso é ridículo. Se respeitando, a gente pode tudo! Mas acho que a bandeira da liberdade aqui no Brasil é submetida a julgamento de pessoas que vão te permitir ou não entrar no rol dos livres e dos libertos. E eu não tenho paciência para isso. Você pode olhar: em vários movimentos nunca me chamam (gargalhadas). Quando eu cheguei, eu sofria muito. Hoje em dia, eu faço os meus próprios movimentos, e me dou com todo mundo, mas na minha casa poucas pessoas entram.
Você também criou um show em homenagem às mulheres em uma live.Quais estavam no repertório?
Maysa, Elizeth Cardoso Dolores Duran, que me inspiram desde criança. Imagina Elizeth Cardoso cantando “eu bebo sim”... E o que era Maysa cantando “todos acham que eu falo demais e que ando bebendo demais”? Todas eram consideradas mulheres da noite, no pior sentido. E essas mulheres foram quebrando barreiras. Também Angela Maria, Dalva de Oliveira, Bethânia, Gal, Rita Lee, Elba… Porque hoje em dia todo mundo toma leite e corre na praia, mas essa não era a realidade da minha geração. Tinha um componente de sofrimento, de expor a vida e de vivê-la intensamente.