28 de agosto de 2020 | 05h00
Seria mais um verso a passar pelas dezenove canções do álbum como tantos passam o tempo todo, cantado e reproduzido sem que muita gente saiba bem do que se trata. Ogã de Ogum é o nome da canção. Ogãs, chefes ou dirigentes, em iorubá, são os homens permitidos a tocar a percussão nas cerimônias pelas entidades superiores da umbanda e do candomblé. Ogum é o orixá da justiça, da ação, dos caminhos, o guerreiro maior. Os versos ficam fortes dentro de uma divisão tremente, de se dançar cantando qualquer palavra. “Pega o cará e bota epô pra temperar / E pra reforçar o ori / Pede padê pra Bará.” Resumindo, a festa farta está prestes a começar.
Algumas faixas depois vem Doce Oxum saudar a rainha das cachoeiras e todas as águas doces com uma saída musical cheia de delicadezas, das mais fiéis à energia amorosa criada por Gisele de Santi, com os percussionistas Cauê Silva, Douglas Alonso e Simone Sou, além de Fi Maróstica no timple, um instrumento de cordas das Ilhas Canárias. E virão ainda Exu Elegbara, Ossain ou Ossanha, Xangô, Iemanjá, Oxalá e vários outros nomes elevados dos terreiros. O álbum de Fabiana Cozza, chamado Dos Santos, seu sobrenome real, poderia ir por muitos caminhos, e seriam todos legítimos num momento de encorajamento a ataques a crenças afrorreligiosas. Mas não foi.
Ao evitar se tornar um extrato puro e respeitoso das giras, ele não se fecha no folclore. E ao suprimir o violão como o irradiador de uma nova bênção aos terreiros, como já fizeram e jogaram a chave fora Baden Powell e Vinicius de Moraes ao compor o LP Afro-Sambas, em 1966, não se torna uma repetição. Por mais que diz se tratar de um trabalho coletivo, o que ele foi em sua composição, Fabi Cozza e Fi Maróstica são os centros de uma sonoridade delicada, de pausas e reflexões sem pressas nem temores. Convidado pela cantora, o baixista Fi pensou se era um território em que poderia entrar mas logo aceitou. Seus arranjos sustentando a voz levaram a música dos orixás para um canto de oração inspirador.
Fabi, que á praticante batizada no candomblé e na Jurema Sagrada, recebeu a missão da criação do álbum em uma obrigação dos orixás. Ela então passou a ligar para os compositores que o instinto pedia e a convidá-los a colaborar. Aos poucos, percebeu que muitos tinham alguma relação com o orixá em que pensava antes de ligar. “Eu descobria que cada um deles tinha uma relação com o pedido que eu fazia, e o disco foi nascendo.”
E eles foram chegando. Mãe Zezé de Oxum, ialorixá de 84 anos, 72 de candomblé, fez questão de cantar e tocar água de coco (sim, não é uma excentricidade, é seu instrumento) em Cânticos para Iemanjá, colhida do domínio público. A grande mãe, rainha mais cantada, senhoras dos mares, pede licença à Fabiana e faz sua entrega.
O detentor do poder, senhor dos caminhos, Exu, Elegbara teve sua saudação, bravum, usada para batizar um samba inédito também da parceria Moyseis Marques, música, e Luiz Simas, letra. Uma energia perfeita, desses encontros raros. A orientação de Fi faz, mais uma vez, a diferença de qualquer álbum já gravado sob a mesma temática. Além das percussões de Cauê Silva, Douglas Alonso e Xeina Barros, e do baixo de Fi, os violoncelos de Adriana Holtz e Vana Bock soam como a própria oração. A mais bela das melodias, e talvez seja onde a melodia se movimente mais, saiu da inspiração do casal Luciana Rabello e Paulo César Pinheiro. Ela se chama Kabecilê, uma saudação a Xangô, algo como “venha saudar o rei”.
É um afro-samba legítimo de Paulo, como se já soasse sua assinatura. “Me faltava uma música de Xangô, e eu sei que Paulinho tem muitos afazeres. Mas eu sabia que tinha de ser ele.” Ela ligou primeiro para Luciana, mulher de Paulo e instrumentista. “Foi no dia em que teve a reunião dos ministros. Luciana contou depois que saiu de frente da TV enojada e fez a música em 20 minutos. Passou a Paulo, que também fez a letra muito rápido. E ele estava desde fevereiro sem compor nada.”
O álbum tem ainda Oração a Ossain, de Pedro Luís e Carlos Rennó, com a guitarra de Jurandir Santana que, se nunca seria usada em um terreiro, leva o canto para a África; e Tempo Velho, de Douglas Germano, uma das poucas letras que não citam diretamente um orixá; e Dona do Mato, de Roque Ferreira, com uma aura cativante, de se grudar logo (“Dona do mato chegou de chapéu de couro e o gaio verde na mão / Foi pra gira juremada, rodou com seu boiadeiro / Pena branca e a marujada / Saiu consultando as matas se acabando na risada”).
O baiano Tiganá Santana volta, depois de assinar o texto de abertura, em Lemba Kakala, com Sami Bordokan evocando todas as ancestralidades do alaúde, Canto Pra Xangô é entoado pela autoridade Nega Duda, sambadeira do Recôncavo Baiano, e uma reaparição da canção-reza Senhora Negra, de Sérgio Pererê, um louvor à Nossa Senhora Aparecida cantada antes por Fabi em um projeto de 2017, mas com outros arranjos. Se soa a muitos como um disco político? “É também”, diz Fabi. “Uma mulher negra cantando tudo isso e chegando com quem eu chego? Só pode ser.” Assim seja.