05 de agosto de 2020 | 05h00
Dois pintores da mesma geração, ambos nascidos no fim do século 19, Paulo Rossi Osir (1890-1959) e Vittorio Gobbis (1894-1968) – hoje praticamente esquecidos –, serão homenageados com a exposição Resgate de Dois Mestres, que o marchand Ugo di Pace vai abrir no dia 3 de setembro, em seu Studio 689. Enquanto a mostra não abre, as obras estão disponíveis no aplicativo IGTV do Instagram @mattardenise. Não se trata de uma simples mostra, mas de uma ambiciosa retrospectiva organizada com o consórcio de vários colecionadores de peso – Breno Krasilchik e Orandi Momesso, além de Ugo di Pace – e obras de diferentes períodos, inclusive da segunda dentição do modernismo brasileiro. Gobbis e Osir tiveram sua importância reconhecida na época por críticos como Sérgio Milliet (1898-1966) e Paulo Mendes de Almeida (1905-1986). Também foram elogiados e criticados por nomes como Mário de Andrade (1893-1045) por não serem ousados como as pintoras do primeiro modernismo brasileiro (Anita Malfatti e Tarsila), mas certamente, a partir desta exposição, serão pintores incontornáveis para quem estudar o desdobramento da estética do Novecento italiano entre nós.
A esse respeito, a curadora Denise Mattar, convidada por Ugo di Pace para analisar as pinturas de Gobbis e Rossi Osir no catálogo da mostra, lembra que o crítico Tadeu Chiarelli, num texto de 1995 a respeito da influência do Novecento italiano sobre a arte brasileira, já citava Gobbis como um artista cujo “classicismo novecentista” é visível tanto na composição de suas naturezas-mortas como na elaboração de seus nus, cuja sensualidade não passou despercebida por Chiarelli. O próprio Rossi Osir, nascido em São Paulo e protetor dos pintores do Grupo Santa Helena (Volpi, Zanini), conviveu com artistas do Novecento quando morou por um período (por volta de 1924) em Milão, sendo então avaliado pela teórica do movimento, Margherita Sarfatti.
Talvez pelo fato de o Novecento ser associado ao advento do fascismo na Itália, ao propor um “retorno à ordem” e confrontar os valores da vanguarda europeia dos anos 1920, os artistas do movimento ficaram rotulados como reacionários – e, por consequência, criticados pelos defensores dos ideais modernos, como Mário de Andrade. “É irônico, pois foi Osir quem acompanhou Volpi em sua viagem a Itália, fazendo-o redescobrir a arte antiga italiana”, observa a curadora Denise Mattar. Volpi deve muito de seu olhar moderno à contemplação dos afrescos de Giotto na capela de Scrovegni. Homem culto, filho de um arquiteto refinado (que trabalhou na construção do Teatro Municipal de São Paulo), Osir tinha uma inclinação tanto para os modernos como para os antigos mestres. Ele estudou técnica de pintura com Donato Frísia, que o introduziu no universo de Cézanne, lembra Denise Mattar.
Gobbis foi apontado, em 1931, como uma das revelações do Salão Revolucionário da Escola Nacional de Belas Artes do Rio (os outros dois foram Portinari e Guignard). Há um diálogo de Gobbis com a pintura de Guignard numa paisagem de 1949, assim como “ecos dos retratos de Portinari” no melhor retrato de Rossi Osir da exposição, Duas Cearenses, aponta Ugo di Pace. Assim, fica demonstrado que ambos não eram avessos aos modernistas.O que acontece, segundo Ugo di Pace, que morou na casa de Gobbis em Copacabana, tem mais a ver com sobrevivência do que propriamente com estética. “Gobbis, muitas vezes, trocava obras por comida”, conta, justificando o grande número de telas que reproduzem peixes – moeda de troca nessas transações. Hábil copista, Gobbis também pintava, a pedidos de clientes, cópias de pinturas renascentistas – envelhecidas num processo curioso, que consistia em enterrar a tela por algum tempo. O assistente de Gobbis, um negro retratado numa tela sem data com laranjas nos braços, era o “coveiro” encarregado da tarefa.
Já Rossi Osir encontrou outro meio de sobrevivência: criou a Osirarte, em 1939, histórica fábrica de azulejos de cerâmica para qual trabalharam Volpi, Portinari e Burle Marx, entre outros. Reproduções de alguns deles podem ser vistas na mostra. Osir dizia que os azulejos o aborreciam, pois tiravam seu tempo para a pintura, mas não conseguiu viver sem eles. Apesar de ter obras suas em museus como o MAM e no MoMA de Nova York, sua produção é pequena. Na retrospectiva ele está representado por 15 obras, entre elas uma magnífica aquarela de Veneza. Gobbis tem 35 pinturas na mostra, a maioria pertencente ao acervo de Ugo di Pace, que pacientemente foi recomprando essas obras do longo dos anos. Aos 93, ele presta, enfim, tributo ao amigo de tempos difíceis.