Dos quatro módulos que integram a exposição Marc Chagall: Sonho de amor, uma traz a acurada denominação que condensa todas as qualidades do mestre, morto em 1985, e que, há mais de década, carecia de retrospectiva: Poeta com asas de pintor (como bem pontuou Henry Miller). Em 186 obras, o apanhado lírico do franco-russo, até os 97 anos decisivo para o remodelar da arte moderna, é ressaltado. Obras raras como O avarento que perdeu seu tesouro (1927) se somam a outras que não foram vistas na itinerância da exposição que teve por origem a Itália e, na versão brasileira, ganha o reforço de obras como Primavera (1938-1939), vinda do acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo.
Poucos artistas teriam estofo para pensar numa autobiografia como Minha vida, escrita por Chagall aos 35 anos. As vertentes de múltiplas técnicas (óleos, têmperas, guaches, litografias e águas-fortes) eram canalizadas a favor de tema permanente: o amor. Mas mesmo esse sentimento, vinha ramificado; e por este veio — dos múltiplos amores —, a mostra no CCBB se viu organizada. "Para Chagall, é o amor a capacidade humana que mais sintoniza o homem e o espaço", pontua texto de Saulo di Tarso, artista e pesquisador destacado no catálogo do projeto, que teve por curadora a espanhola Lola Durán Úcar, historiadora de arte perita nas obras de Picasso, Andy Warhol e Goya. A organização da mostra ficou a cargo da museóloga Cynthia Taboada.
Mesmo um singelo e compacto (27x22 cm) óleo sobre cartão como Retrato de Vava (feito nos anos 1950, para a última esposa, Valentina Brodsky) ganha a magnitude do poeta errante que, na publicação Poèmes (escritos entre 1909 e 1965), decifrou parte da jornada de judeu, em muitas instâncias, perseguido: "Só é meu/ O país que encontro em minha alma". Origens e Tradições Russas é o tema do módulo de acesso ao Chagall exposto no CCBB. Água-forte datada de 1922, Casa em Peskovatik dá singularidade à passagem da mostra no Brasil (já vista no Rio de Janeiro, e que alcançará Belo Horizonte e São Paulo). O grupamento de obras salienta o eterno e recorrente regresso à infância (nas representações), as sinagogas e as casinhas de vilas do artista que, serenamente, recompilou traços culturais judaicos, russos e ocidentais.
São Petersburgo, Paris, Berlim, Moscou e Nova York abrigaram o exilado artista que, tocado pelos cubistas e surrealistas, vivenciou as discriminações na Revolução Russa e nas duas Grandes Guerras. Preenchendo o espaço de parte das obras com justaposições, Chagall foi quem cunhou "O tempo é um rio sem margens". Para além da popularidade nítida no segmento Mundo Sagrado — disposto no piso inferior da galeria, e que versa sobre temas como a Bíblia e a reconfiguração visual de A história do Êxodo, com 24 litografias de chamativo apelo colorido —, Chagall é indissociável do imaginário lúdico, quando o público o identifica como o ilustrador das fábulas eternizadas por Jean de La Fontaine. Cabras, peixes e pombos perspicazes estampam mais de 100 águas-fortes de Chagall que perpetuam narrativas como O galo e a raposa, A raposa e as uvas e A galinha dos ovos de ouro. Num reforço de identidade, em 1931, Chagall parte para uma viagem rumo à Palestina, Egito e Síria, que trouxe por resultado guaches e gravuras com alusão a cenas bíblicas. O impacto, quando se desce as escadas do CCBB, vem da visão do verde e azul que explodem, por exemplo, na acrílica sobre tela O arbusto branco ou duplo autorretrato (1978) ou nos esplendorosos azuis emanados pela litografia Abraão e Sara. O segmento Mundo Sagrado apresenta uma das últimas obras do artista, a têmpera Davi e Golias (1981), contemporânea à fase de investida em vitrais, murais e tapeçarias.
Naturalmente, amoroso
Reconhecido em individual montada em Berlim em 1914, no ano seguinte, Chagall casaria com um dos amores da vida, Bella Rosenfeld (cuja morte, em plena Segunda Guerra, foi amenizada, em 1946, com a ida a Nova York, ao lado de Virginia Haggard). O amor por Bella é dimensionado em trecho de Minha vida (memórias publicadas em 1960): "Nunca termino um quadro ou uma gravura sem lhe pedir um 'sim' ou 'não'". Numa mesma escala de grandeza, o poeta que certa vez disse "Não poderíamos prescindir das flores" exaspera o sentimento do público, no quarto módulo da mostra do CCBB batizado O Amor Desafia a Força da Gravidade.
Honrando a liberdade e sabedoria emanadas pelos bobos e descrita numa crônica de Clarice Lispector dos anos de 1970, que até cita qualidades do "bobo" à la Chagall ("É quase impossível evitar o excesso de amor que um bobo provoca", ela grafa), o poeta, pelas obras, enche a galeria com a vivacidade de flores e registros de comunhão com a natureza, além de casais apaixonados (com destaque para Bella), em obras como Grande buquê vermelho (1975) e O sonho (1980). Sob o peso das tradições russas de Vitebsk (em que Chagall nasceu), mesmo com o alicerce firme numa cultura por vezes rústica, no CCBB, o poeta segue apegado às memórias e à materialidade em suspenso, colocando, em quadros, "vaca no espaço, voando por cima das casas", como ressalta a amável observação simplificada de Lispector.