RIO - O vendedor ambulante que instala sua arara dia sim dia não na porta do condomínio onde mora o candidato à presidência pelo PSL,Jair Bolsonaro , na orla da Barra da Tijuca, tem em torno de 30 anos, sai de casa 4h da manhã, mora nos rincões do Rio de Janeiro. Trabalha com uma bandeira do Brasil amarrada ao pescoço, como uma capa de super-herói. Vende adesivos, camisetas, bonecos de Lula presidiário e claves verdes e amarelas. Sem que perguntem, ensina como usar os dois infláveis: um bate no outro, como numa brincadeira de luta de criança. Na encenação,Lula sempre perde. Mas nem sempre foi assim. Ele deixa escapar que já votou no ex-presidente e chegou a participar das manifestações de 2013. Diz ter mudado o voto porque já esteve do “outro lado da força’’. O vendedor ambulante não tem nome porque se recusa a dar detalhes de sua vida e não quer “falar sobre política’’. Embora fale:
— Não me leve a mal. Mas só dou entrevista para a imprensa estrangeira.
Juliana Ananias tem 35 anos e fala para Deus e o mundo sobre seu voto em Bolsonaro. Moradora do Recreio, completou o Ensino Superior, é filha de Iemanjá com Xangô e ganha R$ 15 mil num mês bom. Divulga uma rede fast food de churrasco, grupos de pagode, uma boate e o que mais vier. Já cruzou com seu candidato no condomínio onde o vendedor ambulante cobra R$ 40 por camiseta — ela tem uma amiga que mora lá. Caçula entre quatro irmãos, foi criada no Rio Comprido, bairro do Centro do Rio que já teve clima de cidade pacata e sobrevive, desvalorizado, ao voraz crescimento de comunidades de seu entorno.
Nascido no morro, o pai de Juliana se formou em Direito pela PUC, foi um mestre-sala e morreu como detetive da Polícia Civil. A mãe, costureira, marmiteira e porta-bandeira, criou a filha ensinando que estudar era importante porque “marido não é emprego’’. Juliana frequentou escola militar, batia continência todos os dias, se formou em jornalismo numa faculdade particular que ajudou a pagar.
— Votei no Lula porque acreditei que o pobre teria vez. Inclusive eu — conta. — Mas cadê esse pobre que melhorou de vida? Que passou a ter plano de saúde, que pode levar o filho para os Estados Unidos? Estou procurando até hoje.
Entre esquerda e direita, ela se define “capitalista’’:
— Gosto de dinheiro, de viajar, de comer bem, de comprar joias. Não vou dizer que sou comunista.
Juliana é contra a política de cotas para negros nas universidades públicas (“que a cota seja para o pobre’’), mas reconhece como ponto positivo do governo Lula os benefícios para o acesso ao Ensino Superior. A corrupção, segundo ela, alterou a rota de seu voto para longe do PT. E o que o aproximou de Bolsonaro? Ela é a favor da liberação do porte de arma, condena a legalização do aborto, não quer discussão sobre ideologia de gênero nas escolas e acredita que militarização e educação vão além de uma rima simples.
Nascida em 21 de março, mesmo dia de Bolsonaro, Juliana credita ao estilo rude de falar e à forte personalidade dos arianos as polêmicas em torno do candidato. E tem resposta para defendê-lo de todas elas, assim como faz nas redes sociais. Criou até um grupo S.O.S no WhatsApp, “Os Bolsonaros’’, que é acionado quando um dos membros se envolve em confusões virtuais.
Seus argumentos. Homofobia: “Se ele fosse não teria aparecido ao lado de Clodovil’’. Racismo: “Racista tem nojo da pessoa negra. Já sofri na pele, tinha uma sogra que achava que preto era só cor de roupa. Ele não é assim’’. Volta da ditadura militar: “Tenho zero medo. Ando na lei’’.
A vitória acachapante de Bolsonaro no primeiro turno surpreendeu pelo avanço sobre o território lulista — estudo revelado pelo GLOBO no último domingo mostrou que o PT perdeu 10 milhões de votos em cidades onde predomina o perfil classe C. Muitos fatores são usados por analistas para explicar a construção do bolsonarismo. Corrupção, violência, antipetismo, desesperança no futuro, descrédito nas instituições brasileiras e na política... Estão todos lá. No entanto, um mergulho nas histórias de quem mudou o voto mostra que cada um tem suas razões, ditas como únicas, complexas e, às vezes, contraditórias.
— As pessoas estão frustradas por conta do vazio político e econômico dos últimos dois anos. Isso leva a um discurso muitas vezes individual e desagregado — atesta a cientista social e antropóloga Rosana Pinheiro Machado, que espera o resultado das eleições para botar um ponto final na pesquisa “Da esperança ao ódio: Juventude, política e pobreza do lulismo ao bolsonarismo’’, feita com a socióloga Lucia Scalco nas periferias de Porto Alegre.
Diretora-executiva do Ibope, Márcia Cavallari define os agentes do bolsonarismo:
— Ele é mais forte entre os que têm maior escolaridade e renda e menor faixa etária. Muitos eleitores do Bolsonaro só viram o PT governando o país.
O videografista Asaph Hiroto tem 22 anos e mora com o irmão e os pais — que imigraram do Japão em 1995 — no Paraíso, bairro nobre e com nome idílico em São Paulo. Vive confortavelmente e se define entre as classes A e B. Não tem idade para ter votado em Lula, mas foi de Fernando Haddad para a prefeitura de São Paulo em 2016. Justifica sua escolha com um conjunto de “poucos’’: pouca idade, pouco conhecimento sobre os candidatos e pouco interesse por política. De lá para cá, diz que passou a estudar muito:
— Não sabia o que era direita e esquerda. Aí passei a ler autores conservadores e me identifiquei. Analisando a realidade de países da Europa, o conservadorismo de direita sempre foi melhor para as nações.
O caminho até Bolsonaro teve como atalho o liberalismo econômico defendido por Paulo Guedes, braço forte do candidato do PSL. A distância do PT ele põe na conta de apoios a ditaduras como Venezuela e Cuba. Além de autores conservadores, Hiroto lê notícias e assiste a vídeos (“Foi o que me moldou’’, resume).
— Até passei a dar uns pitacos no Twitter e no Facebook. Reforço que a questão econômica é importante, que é preciso fazer uma Reforma na Previdência para cobrir o rombo que o governo anterior deixou — conta ele, que entrou no mercado de trabalho aos 19 anos e não descarta uma guinada política no futuro. — Sou flexível. É que essa eleição é diferente. Há muita polarização.
Valter Miranda, de 51 anos, não consegue um emprego formal desde que deixou a Polícia Militar do Distrito Federal, em 2000:
— Foi a cachaça... Cheguei a completar o Segundo Grau. Mas eu era muito viciado em bebida e isso comprometeu minha função.
Na montanha-russa da informalidade, trabalhou em supermercado, na construção civil, em empresa de conservação. Desde que passou por uma clínica de recuperação, há dois anos, garante estar sóbrio. Faz bicos como eletricista, mas tem saudades mesmo é do tempo de PM, de “quando o certo era o certo’’. Foi logo depois desse tempo que Valter votou em Lula:
— Ele era mais para o lado do trabalhador. Mas não cumpriu o que prometeu.
Evangélico, divorciado e pai de quatro filhos, o ex-policial vive numa casa de tijolos aparentes em Sobradinho, região administrativa do DF, 22 quilômetros distante de Brasília. Valter despeja nas costas do PT, além do desemprego, “as badernas em manifestações e essa porcaria toda de legislação LGBT’’. Admite que o fato de ter sido militar ajudou na simpatia por Bolsonaro:
— Ninguém entende mais de povo que um militar.
Mesmo com essa certeza absoluta, ele joga luz sobre uma possível sombra de dúvida:
— Minha intenção é ir nele. Mas vou pesquisar esse outro, esse Haddad. Não dá para acreditar na boca do povo.
Ricardo da Costa Silva, de 38 anos, nasceu em João Pessoa e veio para o Rio de Janeiro com 8 meses. Diz ter votado em Lula em 2002 e 2006, “quando ele era o candidato do povo’’:
— Tenho muita família em João Pessoa. Mandava malas e malas de roupa para lá. Há quatro anos fui visitar, e estava todo mundo bem. De moto, de carro. Mas isso é uma falsa ilusão. A mulher fica grávida, tem filho, passa a ganhar R$ 3 mil de Bolsa Família e dá entrada numa moto. Não quer nem saber o que vai dar de comer para o filho. Trabalho desde os 14 anos e acho muito triste a pessoa viver de esmola.
Ricardo conta que a mãe “ainda é Lula’’. Ele tenta entender a fidelidade eleitoral dela pela “falta de informação e de acesso à tecnologia’’.
Há oito anos, ele fincou pé no Jardim Maravilha, sub-bairro de Guaratiba, na Zona Oeste do Rio, região controlada por milícias. Mora com Damiana, seis anos mais velha e ex-Testemunha de Jeová. Há 25 anos anos, ela abandonou a religião para seguir com ele sem oficializar o casamento. Há alguns meses, ele largou a noite, a bebida e o cigarro para investir na família e num pequeno restaurante no térreo do sobrado onde vivem. Ele cozinha, ela administra.
Para abrir o negócio, Ricardo trocou o carro do ano por um usado e reformou o local onde funcionava a borracharia do sogro. Tem orgulho da pia que fez aproveitando um pneu para que o lugar “mantivesse a essência’’. Investiu R$ 80 mil. O lucro ainda é pingado, mas garante o pagamento do plano de saúde do casal, que preferiu não ter filhos para aproveitar a vida adoidado.
Gostam de viajar, comer bem, ir na Festa do Peão de Barretos, dançar em boates gays de Campo Grande, onde “ninguém perturba Damiana’’. Ex-barman da boate de prostituição Help e de um clube de striptease para mulheres, Ricardo trocou Lula pelo ex-capitão da reserva por causa da “independência política’’. Ele acredita que Bolsonaro não tenha a intenção de fazer “coligações com partidos’’:
— Não pode botar médico no Ministério das Artes, como vinham fazendo, por indicação política.
Para Ricardo, boa parte das polêmicas que cercam Bolsonaro “são só polêmicas’’:
— Ele fala muita merda, mas é da boca para fora. Estou dando um voto de confiança. Ou ele vai fazer coisa boa ou acabar com o Brasil.
Se a segunda opção acontecer, ele já tem uma saída. Ou melhor, três: Lisboa, Franca (interior de São Paulo) ou Goierê (Nordeste do Paraná):
— Essa última cidade tem o maior número de Camaros (carro esportivo) por pessoa.
Analista de sistemas da Dataprev há dez anos, José Pinto Monteiro Neto, de 60 anos, tem planos mais modestos caso Bolsonaro ganhe e o governo não seja aquilo que imagina: esperar mais quatro anos. Na imaginação de José cabem de melhores salários para os policiais a enxugamento da máquina — mesmo ele sendo funcionário público.
Nascido e criado na Ilha do Governador e dono de uma casa de praia em Maricá, José votou em Lula em 2002 e 2006. Queria mais emprego, afinal, “é um trabalhador’’. Conta que relatos de amigos que passaram por estatais durante os governos do PT ajudaram em sua decepção com o partido. E agora? José quer um candidato ficha-limpa, acima de qualquer controvérsia. E mesmo que surgisse um escândalo de corrupção envolvendo o candidato não mudaria seu voto:
— Ladrão por ladrão, melhor ir para um diferente.
José não se acha racista (“Meu melhor amigo é negro’’), homofóbico (“Meus filhos têm amigos gays”), antifeminista (“Mulher onde se mete faz bem-feito”). Em família, está só. A mulher e os dois filhos universitários são “vermelhinhos’’ e vão de Haddad. Para ele, o voto dela é “coisa de mãe’’. Discreta, na porta da cozinha, a dona de casa Conceição Monteiro, de 56 anos, responde, baixinho:
— Eu penso com a minha própria cabeça. Ele não sabe de nada...
(Colaboraram Elisa Martins, Natália Portinari e Daniel Biasetto com os estagiários do projeto Foca no Voto)