sado. O charuto, baforado na cara dos jornalistas e até dentro de campo, principalmente na hora de levantar troféus; os suspensórios esticados sobre o barrigão ostensivo; o desapego à etiqueta, que ia do deboche à truculência; e, é claro, as ideias que defendia compunham um personagem que passava longe da modernidade. Mas em outros aspectos — especialmente o da comunicação — era um homem à frente do seu tempo.
Em artigo para o site da revista “The New Yorker”, o jornalista Adam Gopnik escreveu que o presidente dos EUA, Donald Trump, descobriu que simplesmente dizer o que está fazendo, por mais polêmico que seja, imobiliza a opinião pública e até mesmo as instituições democráticas. No mundo do futebol brasileiro, Eurico já parecia conhecer esse segredo muito antes do advento as redes sociais. Em episódios como o sumiço da renda de um jogo e a tentativa de expulsar os torcedores do gramado de São Januário para continuar uma final de Brasileiro depois da queda do alambrado (2000), manteve-se desafiador mesmo quando questionado.
Se não queria mais debater, bloqueava os jornalistas, fechando os portões do clube. E tinha sempre à mão uma frase irresistível para seus defensores: fazia tudo pelo Vasco. Um argumento amparado por conquistas como a que lançou sua carreira, a repatriação de Roberto Dinamite (que se tornaria seu inimigo político), e a maior de todas, o título da Libertadores — nem uma nem outra como presidente. Adorava a palavra instituição, que usava para dizer que ele poderia ser atacado, mas o clube que representava deveria ser respeitado. E, justiça seja feita, evitava ofender institucionalmente os adversários — mesmo nas brigas mais renhidas com o Flamengo, que se tornou obsessão.
Morre um grande personagem do futebol brasileiro. Muito mais complexo do que o estereótipo que ele mesmo ajudou a criar.
Carlos Eduardo Mansur
Claro estava que o pacote completo Eurico Miranda era um modelo esgotado. Representava o protagonismo absoluto do dirigente voluntário na condução dos destinos de um clube , uma maneira de dirigir que fazia a instituição se confundir com a pessoa, um modelo centralizador e anacrônico que, em dado momento, transformou São Januário num território privado, de lei própria.
A morte de Eurico acontece num período em que, gradativamente, este modelo sai de cena. A receita do futebol na era global inclui mentalidade empresarial, métodos modernos de gestão, novas fontes de receita, transformação do torcedor em cliente, arenas... Mas também doses de impessoalidade, frieza, uma noção de que nada do que é local importa. A ambição precisa ser continental, mundial.
Ao menos no discurso, Eurico não trocava por nada a vitória num Vasco x Flamengo. Tratava título estadual com nobreza de Libertadores, não cogitava usar reservas num clássico carioca. Em dados momentos, um radicalismo capaz até de se sobrepor a objetivos esportivos. Mas também sintomas de uma conexão com o sentimento da arquibancada. Descontados todos os fartos vícios e imperfeições de seus métodos, há algo de Eurico Miranda que serve ao dirigente moderno.
O futebol globalizado pode ser frio em demasia: em nome dos objetivos esportivos ou econômicos, distancia-se de sua gente, dos valores que sua comunidade preza, das identidades. E estas estão profundamente ligadas a aspectos históricos, rivalidades, rituais: uma soma de experiências pessoais e coletivas que edificam a paixão, criam pertencimento. E é dele que o futebol vive. Deve haver um ponto de encontro entre a gestão moderna e a manutenção dos clubes como representações do sentimento de sua gente.
É possível se modernizar sem se refundar. O mesmo futebol que precisava virar uma página, romper com práticas anacrônicas e hoje inaceitáveis, pode se servir de uma dose de Eurico.
Martín Fernandez
Uma boa definição de Eurico Miranda, ex-presidente do Vasco morto ontem aos 74 anos, é de Ricardo Vasconcelos, seu assessor durante anos que, em abril de 2008, deu a seguinte declaração para a revista “piauí”:
“A democracia aqui é o seguinte: o Eurico dá autonomia, desde que cada um saiba seus limites”.
Em dezembro de 2000, com o time classificado para a final da Copa Mercosul e no meio da disputa da semifinal do Campeonato Brasileiro, Eurico aplicou sua noção particular de democracia e demitiu o técnico Oswaldo de Oliveira.
Os delitos do treinador: ter dado um abraço em Felipão, na época desafeto do cartola, e concedido uma folga aos jogadores num domingo. A decisão intempestiva teve os melhores efeitos possíveis para o Vasco que, com Joel Santana no banco de reservas, ganhou os dois troféus.
Talvez seja cedo demais para medir o tamanho do “euriquismo” na história do Vasco. Sua importância é inegável, para o bem e para o mal. É fácil confundir a história de Eurico com a história do Vasco, afinal, ele esteva lá durante os últimos 50 anos, período em que fez de tudo: montou esquadrões inesquecíveis e times lamentáveis, deu grandes dribles nos cartolas rivais e afundou o Vasco em crises. O homem que levou o Vasco a conquistar a América é o mesmo que levou o clube ao terceiro rebaixamento.
Durante 50 anos, Eurico Miranda viveu o Vasco. Mas também viveu do Vasco. O clube fez mais bem a Eurico Miranda do que o contrário. Talvez Bebeto não tivesse sido contratado daquele jeito, talvez a galeria de troféus não fosse tão repleta.
Mas convém não esquecer que o Vasco é uma instituição centenária, que acolheu negros quando o padrão era rejeitá-los, que fez da construção de São Januário um símbolo de resistência contra o elitismo, que enfeitou a versão mais bonita de seu uniforme com o símbolo de seu grande rival. O Vasco já era grande antes de Eurico. Continuará a ser depois dele.