Retomada de boas práticas e políticas públicas
Para a luta antirracista, o primeiro ano do novo governo foi tempo de retomada de políticas públicas nesse sentido e de pressão por responsabilização pública com a defesa dos valores e princípios civilizatórios da Carta de 1988. A crise humanitária dos Yanomami foi a primeira a demandar empenho do poder público. Também se combateu o garimpo ilegal e a presença criminosa de não indígenas nos territórios dos povos tradicionais. Duas mulheres indígenas à frente, tanto do recém-criado Ministério dos Povos Indígenas quanto da Funai, também fizeram avançar políticas em favor dos povos originários.
Quanto à população afrodescendente, o Congresso renovou a política de cotas para as universidades públicas contemplando os povos quilombolas. A Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e a Fundação Palmares retomaram as boas práticas e políticas para o segmento. O ministro dos Direitos Humanos promoveu debates e iniciativas contra o extermínio de jovens negros de periferia, as condições deploráveis do encarceramento no Brasil e, ainda, enfrentou oposição retrógrada e desrespeitosa na Câmara dos Deputados.
Nêgo Bispo, a iluminação de um visionário
2023 nos tirou a presença física de Antonio Bispo dos Santos, o Nêgo Bispo, pensador negro nascido em 1959, no Vale do Rio Berlengas, região de Francinópolis (PI). Agricultor, ativista, poeta, escritor e mestre do Quilombo Saco Curtume, em São João do Piauí, ele foi uma das lideranças que, a partir dos anos 2000, contribuiu com o seu pensamento e luta para a valorização dos quilombos no Brasil.
Inspirado na “cosmologia politeísta afroquilombola”, Bispo era de uma sabedoria única. Contestando os moldes tradicionais de produção de conhecimento — para ele, um saber sintético e fragmentado — percorreu o país, como palestrante ou professor convidado, disseminando o seu saber orgânico e vívido. Em 2023, lançou o livro A terra dá, a terra quer, com alguns dos seus muitos saberes transmitidos ao longo dessas andanças.
Nêgo Bispo era chamado de mestre, e sua maestria foi reconhecida em vida por ativistas e por parte da intelectualidade brasileira. Sigamos honrando a sua existência, mas, sobretudo, o seu legado, promovendo debates afro-pindorâmicos com confluência de saberes: coexistindo, sem deixar de ser. Afinal, “Um rio não deixa de ser um rio quando ele conflui com outro rio. Essa é a grandeza da confluência.”
Portas abertas para as escrituras de mulheres pretas
Muitas das promessas de novo ano dizem respeito a deixar ir o que não faz sentido, cuidar do que permanece. Assim, cheguei às estantes de livros da sala. No ritual de limpeza, pude tocar em muitas obras assinadas por mulheres negras.
Desde 2021, quando idealizei o I Encontro Julho das Pretas que Escrevem no DF tenho estado com muitas. Permanecemos juntas para trocar informações, participar de eventos, organizar saraus e nos aquilombar em dores e sonhos. Somos mais de sessenta.
Sentir a força da nossa teimosia em escrever, falar, publicar, não publicar, desengavetar escritos, deixá-los nas gavetas enquanto nutrimos nossa coragem de trazê-los à luz, me aqueceu e emocionou.
Mas é preciso falar de como o caminho é árduo. A base, o cimento do chão que ousamos pisar, é o racismo. Estrutura que morde e sopra. Homenageia você para, no outro dia, abrir sua bolsa sob acusação de furto.
Não deixa que circule nas ruas da cidade em festa literária porque quer uma foto, um aceno, um gritinho, mas não compra seus livros.
Permite que o governo federal, ao lançar um prêmio homenageando uma escritora negra, vulnerabilize as autoras negras inscritas e mine suas chances. Exige muito mais do que a escrita para considerá-la escritora.
Aquele racismo que nos derruba. Mas nos vê de pé no outro dia. Escrevendo. Cansadas quando queremos bem-viver. E portas escancaradas ante nossa passagem. Preta. E ancestral.