Alguns países como França, Itália e Espanha têm tradição secular no cultivo de uvas e fabricação de vinhos. No Brasil, a Serra Gaúcha é precursora da vitivinicultura. O que poucos sabem é que o Distrito Federal também tem potencial. Por causa da amplitude entre altas e baixas temperaturas, o centro do país é propício para a prática.
Área urbana
Bonitas parreiras cobrem uma propriedade de dois hectares no Lago Norte, com mirante que dá para toda a cidade. É o charmoso vinhedo Lacustre. Há 11 anos, Odelmo de Gregorio, 82, começou a cultivar no DF uvas de mesa para produzir um vinho como o das colônias italianas — rústico, de "garrafão".
Aos sábados, acontecem piqueniques na parte plana da plantação. O visitante pode desfrutar de espumante, suco de uva, focaccia, bolo, frios e geleia. Domingo é dia de degustação — queijos, pães, azeites e um lindo pôr do sol harmonizam com vinhos da casa. A proposta é receber grupos pequenos. Tudo mediante agendamento.
Uma caminhada pela lavoura mostra uvas conduzidas em manjedoura (também chamada de latada), quando a planta se esparrama no sentido horizontal. O método é menos comum quando o assunto são vinhos finos, por isso, passou por alguns ajustes para dar certo. "Falar de vinhos na região ainda é algo muito novo. Diria que estamos escrevendo uma história. Tocamos um 'laboratório experimental'", acredita.
Apesar de a ideia ganhar força, Marcos não abandonou a profissão de formação e segue atuando como arquiteto. Afinal, a vitivinicultura requer atenção, capricho e paciência. O vinho demora de seis meses a um ano depois da vindima (colheita) para ser engarrafado. "Um vinho de qualidade espera ainda mais tempo para ser degustado", acrescenta.
Quem orienta a produção por lá é o enólogo Carlos Sanabria, 32 anos. Uma parceria com o Lacustre que já totaliza dois anos. Ele veio de Bento Gonçalves (RS), conhecida como "a capital brasileira do vinho", interessado pela possibilidade de desenvolver a bebida em uma região ainda sem tradição. Na bagagem, trouxe muito estudo e conhecimento prático. De família de produtores, Carlos tem contato com uvas e vinho desde os 8 anos de idade.
A filosofia do especialista é elaborar um vinho com o mínimo de intervenção humana. Provando ter um pé no cerrado, o gaúcho quer que os próximos lançamentos prestigiem o quadradinho e, por isso, pensa em valorizar cada vez mais os sabores característicos daqui.
Ele toca também um projeto solo: a casa de vinhos naturais e fermentados Sanabria, um wine bar e loja. O refúgio, em meio às quadras 406 e 407 da Asa Norte, é ponto de degustação de vinhos artesanais, enquanto se escuta um bom vinil. Segundo Carlos, a música tem um porquê: "Além de cair bem com o momento, as ondas sonoras equilibram o vinho".
Um guia da bebida
•Vinhedo, parreira, videira — Pé de uva
•Vitivinicultor — Planta, cuida do vinhedo e é também enólogo.
•Enólogo — Apreciador de vinho e especialista no assunto.
•Sommelier — Responsável pelo serviço do vinho e degustação. Direciona qual é o tipo apropriado ao paladar e ao bolso.
•Cepa ou casta — É o tipo da uva: chardonnay, cabernet sauvignon, pinot noir, syrah (a mais comum aqui) e outras.
•Fermentação alcoólica — Processo que transforma o açúcar natural da uva em álcool, sob a ação de microrganismos.
Para turistar
Mara Flora Lottice Krahl, sommelier, consultora e professora do Departamento de Turismo da Universidade de Brasília (UnB), explica que o enoturismo pressupõe deslocamento e infraestrutura turística (onde comer e, se for o caso, onde dormir), e celebra o avanço da atividade. “Observamos um crescimento exponencial em regiões do Rio Grande do Sul e em todos os estados que têm vinicultura, a exemplo do DF. O interessante é que a cultura do vinho enquanto objeto principal do turismo tem capacidade de inserir outros setores, formando um ecossistema produtivo”, aponta.
Mara, porém, lembra que a prática enoturística não se limita ao mundo rural. “Ele complementa e tem relação de interdependência com o universo urbano, onde está o principal público consumidor e os agentes de mercado.”
Negócio familiar
Quando o portão da Casa Vitor se abre, é fácil se sentir realmente em casa. Aves, um lago repleto de peixes e um jardim colorido introduzem o campo de videiras. A sommelier e sócia do vinhedo, Renata Vitor, 31 anos, garante que o pôr do sol é de tirar o fôlego.
Em 2018, a médica Marina Vitor e o agricultor Carlos Vitor, tios de Renata, decidiram unir a paixão pelo campo à produção da bebida em uma propriedade localizada no Programa de Assentamento Dirigido do Distrito Federal (PAD-DF), no Paranoá. "Vitor" é sobrenome e uma homenagem a um dos filhos de Carlos, que faleceu ainda criança. O vinhedo segue administrado pela família desde então — e isso faz toda a diferença.
O então cultivo de soja, feijão e milho virou somente de uva. Em setembro de 2019, foram plantadas sete mil mudas da syrah. A primeira produção saiu em 2021. O casal mora na propriedade e usa um dos quartinhos como cave para os vinhos, com temperatura regulada. Os rótulos ainda não foram para impressão, então, Renata escreve no recipiente à mão. E fica charmoso. Os visitantes aproveitam para pedir dedicatórias e eternizar momentos na garrafa.
A casa abre aos sábados com programação das 16h às 21h, com espaço para 35 pessoas. O roteiro inclui visita às parreiras, brinde no fim da tarde e um jantar em quatro etapas, elaborado por Marina, que ama inventar na cozinha. Mineira, ela deixa um pouco do Vale do Jequitinhonha (MG) nos pratos. Carlos trabalha até hoje nas plantações. Além de uvas viníferas, há produção de uvas de mesa — que, em setembro, estão na fase do pinto, ficando roxas — e um pomar doméstico com macieiras e pereiras. As flores que ocupam o terreno servem para controle biológico, porque impedem insetos e pássaros de atacarem os pés.
O interessante é que a proposta caseira do vinhedo abraça outras pessoas da região. "Buscamos trazer gente que é querida por nós e incentivar o trabalho entre eles, seja na cozinha, seja na lavoura. Parte da decoração também vem de artesãs daqui", conta Renata. Mulheres artistas reciclam garrafas de vinho usadas da Casa Vitor e usam os frutos cabaça e coité para criar objetos, que estão à venda no local.