RIO — Nei Lopes conta que, quando adolescente, na mesa de jantar de sua casa no Irajá, Zona Norte do Rio, não se podia falar sobre racismo. “Tá querendo imitar americano?”: esta era a resposta que ele ouvia, em referência ao despertar do Movimento pelos Direitos Civis nos EUA, nos anos 1950.
Se o passado é nebuloso, Nei recorre justamente à ancestralidade africana para olhar para o futuro. Da sabedoria do continente de seus antepassados vem Ifá, um oráculo do povo iorubá e tema do novo livro do pesquisador e notório sambista de 78 anos, “Ifá Lucumí — O resgate da tradição” (Pallas Editora). Nele, apresenta pesquisa aprofundada sobre um rito do candomblé ligado ao orixá do destino, Orunmilá, e de uso exclusivo dos babalaôs.
No livro, Nei disseca a relevância que o culto a Ifá tem em Cuba, onde tal vertente religiosa é muito forte como parte da tradição lucumí. Já no Brasil, sua prática perdeu força no começo do século XX, com o rito oracular do babalaô sendo substituído pelo jogo de búzios das ialorixás e babalorixás. Mas, conta ele, felizmente os anos recentes têm registrado um aumento de interesse em reavivá-lo.
‘Babalaô acadêmico’
Nei conseguiu se debruçar sobre a pesquisa de Ifá em 2017, quando levou de presente ao padrinho de candomblé um exemplar do seu “Dicionário de História da África”. Em troca, recebeu um pedido para resgatar o rito. Mas suas primeiras incursões no assunto, na verdade, remontam há quase 30 anos.
— O Ifá é um sistema que reúne análise combinatória, filosofia e arte. É um manual de vida, feito para se tomar as melhores decisões e sair de situações adversas.
Porém, Nei ressalta que seu livro não tem a intenção de ensinar ninguém a praticar o culto a Ifá. Esta é uma função restrita aos babalaôs. Ele, aliás, foi consagrado como tal há quatro anos, mas prefere se manter como um “babalaô acadêmico”, por assim dizer. Papel importante na defesa de uma tradição que, em 2008, se tornou, pelas mãos da Unesco, Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade.
Apesar desta valorização institucional do culto a Ifá, Nei enxergava a necessidade de expor ainda mais ao mundo, e sob seu olhar, o singelo pedido feito pelo seu padrinho há três anos.
— Quero mostrar que existe muita filosofia dentro desse conjunto de contribuições culturais africanas ao Brasil — diz o autor, que com este chega ao 40º livro (em dezembro, lançou “Afro-Brasil reluzente: 100 personalidades notáveis do século XX”).
E a atuação de Nei vem sendo travada em um triste cenário de perseguição a religiões de matriz africana. Apenas no Rio, a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa contabilizou 201 casos de agressões e ameaças em 2019, mais que o dobro de 2018 (92).
Um panorama que dialoga diretamente com o debate racial, tão efervescido em 2020 com os desdobramentos do assassinato de George Floyd, nos EUA, o movimento #VidasNegrasImportam, os protestos antirracistas ao redor do mundo. E a derrubada de estátuas como a do mercador de escravos Edward Colston, em Bristol, na Inglaterra, substituída ontem por outra, de uma manifestante negra.
— Toda esta ebulição é prenúncio de um novo tempo. Dá a impressão que é modismo, mas não é. Não há grandes transformações sem componentes de violência — destaca Nei, referindo-se à destruição de monumentos. — Estas estátuas deveriam estar em museus ou qualquer outro lugar de memória, mas não nas ruas. Fica parecendo uma afronta, um achincalhe, um desrespeito a quem sofreu nas mãos destas pessoas. São figuras históricas, mas marcadas por crimes.
‘Carnaval, só com vacina’
Para Nei Lores, a conscientização que se vê hoje “é bacana”. Bem diferente dos tempos em que levava pito por falar de racismo durante o jantar.
— É preciso que todos saibam o quanto o mundo deve à África. Modos de vida foram destruídos pelos europeus, e um dia terá de haver uma compensação.
Em relação ao panorama cultural do país, Nei demonstra preocupação. Para ele, o país passa por um processo de desmonte institucional.
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— Para essa gente, o popular é considerado algo menor, folclórico. Mas não há de ser nada, o poder é transitório, mas nosso trabalho fica para a posteridade — diz o mestre, em quarentena e sem muito otimismo sobre o futuro da folia. — Carnaval, nem pensar, né? Só com vacina. Mas tudo bem, o samba não é episódico. Ele não vai morrer porque jamais agonizou, está sempre se reinventando. Inclusive, já tenho observado algumas movimentações nesse sentido, mas fica para um papo quando estiver lançando um novo livro.