RIO - Sobre a potência da base do BaianaSystem , a voz de Elza Soares rasga o ar com uma declaração sintética, carta de intenções de uma vida: “Eu não vou sucumbir”. As palavras que abrem “Libertação” (inédita de Russo Passapusso) soam como eco. Em “Mulher do fim do mundo” , de 2015, ela já tinha gritado: “até o fim eu vou cantar”. Em 2002, assumindo os versos que Chico Buarque escreveu pra ela, afirmou-se “dura na queda”.
Os primeiros segundos de “Planeta Fome” (Deckdisc), seu novo disco, dialogam portanto com essa certeza de sobrevivência e força que sempre acompanhou Elza. E preparam terreno para o que virá em seguida: um retrato de um Brasil doente, mas que carrega nele mesmo a cura.
— Já vi o país caidinho e doente assim. Mas o Brasil só está gripado, vai passar logo — diz Elza, no estúdio da Deckdisc, onde gravou o álbum. — O remédio, o chá, o própolis dessa gripe é o povo. Já passamos por isso nos anos 1960, pra mim era uma gripe que já tinha acabado, mas ela continua. Mas o chá do povo tá fraco, o povo anda com medo, parece que botaram Lexotan na água do povo.
“É um absurdo a gente ainda ter que gritar uma letra como a de 'Não recomendado' (de Caio Prado, com versos que acusam a homofobia da sociedade brasileira), ou dizer que a mulher é importante. ”
Elza se supreende por ter que repisar temas que, a seu ver, deveriam estar superados:
— É um absurdo a gente ainda ter que gritar uma letra como a de “Não recomendado” (de Caio Prado, com versos que acusam a homofobia da sociedade brasileira) , ou dizer que a mulher é importante. Por isso o Brasil é motivo de chacota hoje.
“Planeta Fome” é esse lugar doente cantado por Elza no disco — e retratado por Laerte na capa. A cantora retoma a expressão que usou para responder Ary Barroso em 1953, quando ela, jovem caloura do programa do compositor e apresentador, ouviu dele a pergunta: “De que planeta você veio, minha filha?”. Ele fazia chacota com seu jeito de falar e de se vestir, que indicava sua origem pobre.
— A concepção desse disco começou quando dei aquela resposta a Ary Barroso — explica Elza, que termina o álbum fazendo uma referência aos Titãs, como o verso “Você tem fome de quê?”. — Naquela época, a fome era de comida. Hoje é de tudo: de respeito, de sáude, de amor. Esse país sempre viveu de amor. Cadê o amor desse país?
“Não me considero uma 'Chica Buarca', mas minhas músicas são mensagens de dor, da dor que vivi. Não preciso ler livros para contar histórias, elas estão na minha vida.”
Já na segunda faixa, a inédita “Menino” (composta pela própria Elza, cantada à capela), ela mesmo tenta indicar caminhos para a resposta, ou ao menos seu início. Dirigindo-se ao personagem título com ternura e voz embargada, ela diz: “Venha cá, menino/ Não faça isso não/ Sei que é muito triste/ Não ter casa, não ter pão/ Não te leva a nada/ Destruir o seu irmão/ Você representa/ O futuro da nação”.
— Na Água Santa ( bairro da Zona Norte onde ela foi criada ), via sempre garotos brigando, jogando pedras um no outro. Então fiz essa canção pensando nisso, ela é antiga à beça. Tenho muita música minha. Não me considero uma Chica Buarca , mas minhas músicas são mensagens de dor, da dor que vivi. Não preciso ler livros para contar histórias, elas estão na minha vida.
Nos seus premiados discos anteriores, “A mulher do fim do mundo” (2015) e “Deus é mulher" (2018), Elza esteve sob a produção de Guilherme Kastrup — e cercada de músicos identificados com certa cena experimental paulistana, como Kiko Dinucci, Romulo Fróes e Marcelo Cabral. Desta vez, sob a produção de Rafael Ramos, ela aparece novamente cercada de artistas mais jovens, mas de outros ares. O rap está representado por BNegão (“Blá blá blá”) e Rafael Mike (“Não tá mais de graça”). Além de BaianaSystem (que em “Libertação” tem o reforço dos arranjos de Letieres Leite e os vocais de Virginia Rodrigues), há participações de músicos como Pupillo. Pedro Loureiro canta “Me dê motivo” como música incidental em “Blá blá blá” — Pedro é empresário de Elza ao lado de Juliano Almeida, além de diretor artístico do disco.
— Adoro cantar o verso do Rafael Mike: “A carne mais barata do mercado não tá mais de graça/ O que não valia nada agora vale uma tonelada”. Sou eu — afirma Elza, lembrando que Mike descobriu recentemente que era filho de José Baptista Ribeiro, que foi baterista na banda da cantora. — O sorriso dele é igual ao do pai.
“Não sei se vou ver um Brasil melhor. Mas tô trabalhando pra isso.”
Sucesso na voz de Tim Maia, “Me dê motivo” (de Michael Sullivan e Paulo Massadas) entra como referência à classe média que estão deixando o país (“Me dê motivo/ Pra eu ir embora”):
— Sou contra. Quando o país precisa de colo vai deixar a criança no chão? Não é só praia e futebol, não. Tem que cuidar.
Elza dá seus sermões no menino Brasil, como em “Comportamento geral”, de Gonzaguinha. Além dessa, ela gravou outra do compositor no disco, “Pequena memória de um tempo sem memória”.
— Gravei Gonzaguinha no início da carreira dele, “O gato” (em 1972) — lembra Elza. — As duas que gravei agora são duas porradas. E eu uso a minha voz pra dizer o que se cala (citação ao verso de “O que se cala”, de Douglas Germano, cancão que ela lançou em “Deus é mulher”) .
Rafael Ramos conta que Elza comandou o processo de escolha de músicas e foi voz ativa na sonoridade (“Assim que começamos, ela disse: ‘quero guitarra!’”, conta o produtor, completando que “ela respirou no cangote do disco”). Um dos compositores que ela queria no disco era Pedro Luís (“Virei o jogo”), que na reta final do disco reafirma o que ela cantou no início: “Nunca arreguei/ Quando tropecei sempre me ergui/ Já quebrei a cara/ Enfrentei as feras, nunca me rendi”.
— Não sei de onde tiro a força. Tem que perguntar para a força porque ela insiste em ficar em mim — diz a cantora, que parece não ter curiosidade na resposta, apenas quer seguir. — Não sei se vou ver um Brasil melhor. Mas tô trabalhando pra isso.
Retrato musical de um país
Bernardo Araujo
Retratada em musical de sucesso, enredo da sua Mocidade em 2020, atração do Rock in Rio, Elza Soares está com tudo e não está prosa. Furiosa, talvez, como mostra desde a abertura, com “Libertação”, uma pancada com a cara do BaianaSystem — e produção e acompanhamento do próprio. A forma gutural como Elza canta “Eu não vou sucumbir” faz Russo Passapusso parecer um dos Canarinhos de Petrópolis. Apesar de ser produzida pelo trio baiano, a faixa dá uma pista de algo que aparece por todo o disco: a batucada, orgânica ou eletrônica, que emoldura a voz rascante da cantora do início ao fim.
Depois da vinheta “Menino”, o carimbó-enredo “Brasis” atualiza as tradicionais homenagens ao país, sem exaltar apenas as qualidades, mas com um amor igualmente incondicional — ou maior ainda. BNegão brilha com seu fraseado perfeito de rap em “Blá blá blá”. O Tim Maia incidental (na voz de Pedro Loureiro) com “Me dê motivo”,) acaba quebrando a levada planethêmpica da música.
Em versão reggae, o clássico “Comportamento geral”, de Gonzaguinha, se encaixa como uma luva no diagnóstico de um Brasil doente. O arranjo, leve, quase dançante, se contrapõe com precisão ao bico na canela que é a letra.
O conceito do disco, aliás, nem sempre joga a favor. Apesar de alguma variação na sonoridade, o tema acaba soando repetitivo em canções como a balada “Tradição”, que ecoa Benito Di Paula, “Lírio rosa” e “Não tá mais de graça”, em que ela retoma o tema de “A carne”, dizendo “A carne mais barata do mercado não tá mais de graça”. Elza e sua equipe (Rafael Ramos assina a produção), aliás, levam 10 no quesito conceito: o disco é todo bem amarradinho, em som, letra e música. Os arranjos passeiam pela MPB moderna, com rap, soul e outras levadas black misturadas.
“País do sonho” traz uma mensagem mais esperançosa, com direito a batida nervosa e homenagem ao ex-marido Mané Garrincha, antes de mais uma pancada de Gonzaguinha, “Pequena memória para um tempo sem memória”. O disco acaba bem, com a excelente “Não recomendado”, lembrando que no Planeta Fome ainda reina muita desnutrição. Em várias acepções, infelizmente.